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Propriedade Industrial e Importação Paralela no Ordenamento Jurídico Brasileiro

por Gustavo Piva de Andrade

30 de setembro de 2012

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No livro "O Mundo é Plano", o escritor Thomas Friedman apresenta a interessante teoria de que o planeta se achatou. Citando eventos como a queda do muro de Berlim e a criação da Internet, ele argumenta que diversas forças contribuiram para o desaparecimento de barreiras entre os países e geraram o desenvolvimento  de uma verdadeira economia global.  Isso possibilita, por exemplo, que um computador  fabricado na Ásia, com componentes advindos de diversos paíes, seja oferecido em um estabelecimento da América do Norte apenas dois dias depois. Segundo Friedman, este é um dos muitos exemplos que denotam o encolhimento e o achatamento do mundo, reforçando a sua tese de que tudo está conectado. 

Essa nova ordem cria enormes desafios para o comércio internacional. Nesse contexto, torna-se fundamental examinar a questão da livre circulação de bens entre diferentes países, o que, no escopo do presente artigo, será feito à luz dos direitos de propriedade industrial e da prática conhecida como importação paralela.

A "importação paralela" se dá quando um produto que incorpora marca, patente ou desenho industrial alheio é introduzido em determinado país, à margem do sistema de distribuição administrado pelo titular do direito de propriedade industrial. Trata-se, pois, de produtos genuínos, mas que são incorporados ao mercado daquele território sem autorização do titular do direito exclusivo ou do seu licenciado. A questão é se, baseado nas regras da legislação brasileira e dos tratados internacionais, o titular do direito de propriedade industrial pode ou não coibir esse comércio paralelo.

Na seara da propriedade industrial, existe um importante princípio chamado "exaustão de direitos". Tal princípio consagra o entendimento de que a prerrogativa do titular de impedir a circulação do produto que incorpora a sua marca ou patente esgota-se com a primeira venda. A partir daí, entende-se que o titular já foi devidamente remunerado, não podendo proibir ou reivindicar participação em vendas subsequentes daquele exemplar específico.

Como direitos de propriedade industrial são territoriais, sua exaustão pode se dar nos âmbitos  nacional ou internacional. Na exaustão nacional, o direito do titular da marca ou patente esgota-se apenas no país em que o respectivo produto foi inserido no mercado interno pelo próprio titular ou com o seu consentimento.  Já na exaustão internacional, o direito exclusivo exaure-se a partir do momento em que o titular ou seu licenciado coloca o produto no mercado, independentemente do país em que isso é feito.  Portanto, nos países que adotam o sistema da exaustão nacional, o titular do direito de propriedade industrial pode coibir a importação paralela dos seus produtos, ao passo que nos países que adotam o sistema da exaustão internacional, ele não pode.

Diante dos interesses divergentes de cada país, não surpreende que a questão da exaustão de direitos de propriedade industrial sempre tenha gerado enormes controvérsias. Prova disso é que, durante as negociações do TRIPS, principal tratado que regula a proteção e exercício de direitos de propriedade industrial, assinado em 1994, os países-membros não foram capazes de chegar a um consenso para estabelecer uma diretriz internacional sobre o tema. Assim, consignou-se no artigo 6 que "nada no Acordo será utilizado para tratar da questão da exaustão direitos", de onde decorre que cada país ficou autorizado a adotar as suas próprias regras.

Foi exatamente nesse contexto que, dois anos depois, o Brasil promulgou a atual Lei de Propriedade Industrial (Lei 9.279/96) e legislou sobre a matéria. Em relação às marcas, a lei brasileira garante ao titular do registro o direito de uso exclusivo em todo o território nacional (art. 129), bem como a prerrogativa de zelar pela reputação e integridade material do signo (art. 130, inciso III).  Ademais, determina, no seu artigo 132, inciso III, que o titular da marca não poderá "impedir a livre circulação de produto colocado no mercado interno, por si ou por outrem com seu consentimento".

Em relação às patentes, a lei estabelece, no seu artigo 42, que "a patente confere ao seu titular o direito de impedir terceiro, sem seu consentimento, de importar produto objeto da patente". Além disso, destaca, no artigo 43, inciso IV, que tal prerrogativa não se aplica a "produto que tiver sido colocado no mercado interno diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento".   Os desenhos industriais seguem o mesmo regime das patentes, pois a lei deixa claro, no artigo 109, parágrafo único, que "aplicam-se ao registro de desenho industrial, no que couber, as disposições do artigo 42 e do inciso IV do artigo 43".

Da leitura desses dispositos, percebe-se que, tanto na seara das marcas, quanto das patentes e desenhos industrias, o legislador brasileiro fez expressa referência ao mercado interno quando tratou da exaustão de direitos. Como resultado, conclui-se que o direito exclusivo se exaure  apenas quando o produto é inserido, pelo titular ou por outrem com o seu consentimento,  no mercado brasileiro. Em termos práticos, isso significa que o titular e seu licenciado não podem impedir a livre circulação do produto que eles introduziram no território nacional, mas podem combater a venda e revenda de produtos introduzidos por terceiros sem sua autorização no mercado interno.

Essa parece ter sido a clara opção do legislador, especialmente porque o Projeto de Lei n° 824-B de 1991, que resultou na Lei de Propriedade Industrial, preconizava regras substancialmente distintas. De fato, em relação às marcas, a redação do referido Projeto de Lei estabelecia que "o titular da marca não poderá impedir a livre circulação de produto colocado no mercado por ele mesmo ou por outrem com seu consentimento". Ou seja, a redação original  não fazia qualquer referência à expressão "mercado interno" que atualmente existe na lei. Já em relação às patentes, o Projeto de Lei determinava que o direito de excluir do titular não podia ser exercido em relação a "produto que tiver sido colocado no mercado interno ou externo diretamente pelo titular da patente ou com seu consentimento".

Como se vê, o Projeto de Lei postulava solução diversa do texto que foi aprovado, pois estabelecia que a colocação do produto pelo titular em qualquer mercado (interno ou externo) gerava a exaustão de direitos. Portanto, a referência somente ao "mercado interno" vista nos artigos 132, III, e 43, IV, da lei não foi fruto do acaso, mas, sim, adveio de uma clara opção legislativa que parece absolutamente em linha com a política de fortalecimento dos direitos de propriedade industrial vista no Brasil nos anos pós-TRIPS.

Apesar disso, a jurisprudência brasileira ainda é vacilante quando o assunto é importação paralela. Existem importantes decisões que reconhecem a ilicitude da prática, mas também existem julgados no sentido contrário. Normalmente, os órgãos julgadores que se posicionam a favor do comércio paralelo argumentam que ele é benéfico para o consumidor, já que possibilita uma maior redução de preços. Também fazem alusão ao direito antitruste, ressaltando que o comércio paralelo está em consonância com os princípios da livre iniciativa e da livre concorrência.

Entendemos que essa é uma forma simplista de examinar a questão, pois existem aspectos mais amplos que precisam ser considerados. O mais importante deles talvez seja o fato de o legislador brasileiro, como visto, ter adotado uma política que fortaleceu sobremaneira a posição dos titulares de direitos de propriedade industrial.  E se o legislador tomou esta decisão, certamente não o fez inocuamente, mas, sim, por vislumbrar prerrogativas que servem para estimular a inovação e a criatividade no meio empresarial. Logo, ainda que no curto prazo direitos exclusivos possam parecer prejudiciais, eles estão intrinsecamente relacionados ao conceito de eficiência dinâmica e a todos os benefícios de longo prazo dela decorrentes.

Também é importante lembrar que transmitir qualidade e reputação é uma das principais funções das marcas. Muitas vezes, o comércio paralelo interfere nessa questão, pois não se pode garantir que produtos importados paralelamente serão transportados e armazenados de forma adequada, nem que respeitarão a legislação consumerista e diversas obrigações regulatórias impostas pelas autoridades locais. Em alguns segmentos – como, por exemplo, medicamentos, cosméticos, alimentos, bebidas e brinquedos -, isso pode causar grandes prejuízos para a reputação da marca.

Sob a perspectiva antitruste, a importação paralela também não resiste a uma análise mais minuciosa, uma vez que tal prática gera alocação ineficiente de recursos econômicos e possibilita o chamado free riding. Afinal, o importador paralelo simplesmente "pega uma carona" na publicidade e em toda a estrutura pré e pós venda montada e administrada, a altos custos, pelo titular do direito de propriedade industrial. Como resultado, se o comércio paralelo for permitido, o titular e seu licenciado tendem a investir cada vez menos nesse tipo de serviço, o que é altamente prejudicial. Por fim, vale destacar que as regras do direito antitruste não foram concebidas para promover a concorrência intramarca, já que, normalmente, existem diversos substitutos no mercado relevante em que o produto está inserido.

Por tudo isso, a menos que o Congresso resolva mudar de direção e promova uma mudança legislativa, parece-nos inexorável a conclusão de que o regime vigente no Brasil é o da exaustão nacional, de onde decorre que coibir a importação paralela é uma das prerrogativas que a lei brasileira confere aos titulares de direitos de propriedade industrial.

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Gustavo Piva de Andrade

Socio, Advogado, Agente da Propriedade Industrial

Advogado, graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Mestre em Direito da Propriedade [...]

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