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Índio não quer só apito

por Sandra Leis

19 de abril de 2005

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Recentes notícias confirmaram que nosso País é realmente um país de contrastes. Enquanto uma página do jornal anunciava o brutal assassinato de um ambientalista, que simplesmente queria proteger os animais da Reserva do Tinguá, nos arredores do Rio, contra a ação predadora de caçadores, a página seguinte revelava que o Rio é o ponto turístico preferido de alguns animais não tão urbanos, como jacarés, pingüins, baleias e leões marinhos. Até uma capivara já foi a vedete dos noticiários cariocas, quando teve de abandonar sua morada na Zona Sul e se mudar, como qualquer outro assalariado, para lugares não tão aprazíveis na Baixada.

Para completar, fomos surpreendidos com mais uma notícia triste: a morte dos indiozinhos no Mato Grosso do Sul.

Quando a expedição de Cabral aqui aportou, foi recepcionada por milhares deles: fortes guerreiros, índias robustas, assustados curumins. Até se poderia imaginar que muitos morreriam alguns anos depois, vítimas de disputas de terras e doenças transmitidas pelos brancos, mas nunca de fome ou desnutrição. Até se poderia admitir morte semelhante entre índios norte-americanos, vivendo em regiões inóspitas, castigadas pela neve e o frio ou a seca dos desertos.

Nossos índios, porém, vivem em uma terra abençoada pelos trópicos, onde a natureza também é cheia de contrastes, mas generosa o bastante para alternar montanhas e planícies, planaltos e pantanais, chuva e sol, rio e mar, como se quisesse dar a todos uma chance. A chance de plantar e colher.

Como se pode conceber, então, que esses mesmos índios que nos ensinaram seus pratos, suas curas, suas técnicas de caça e pesca morram de desnutrição? Onde estará a mandioca, o milho, o pintado e a traíra, o açaí e o araçá? Onde estarão suas terras?

Nos foros internacionais se discute a proteção do conhecimento tradicional, o conjunto de práticas, conhecimentos e ritos, geralmente usando recursos naturais da biodiversidade, vinculados a uma comunidade, que passam de geração a geração, ou seja, o legado desse índios. Especialistas queimam suas pestanas em Genebra para encontrar uma maneira de proteger esses valiosos conhecimentos e convencer os titulares de patentes provenientes de recursos genéticos e conhecimentos tradicionais a revelar a sua fonte e repartir os benefícios decorrentes dessas patentes entre as comunidades detentoras de tais conhecimentos e recursos.

Doutores realizam estudos sobre criações artísticas indígenas, tentando defini-las e adequá-las à legislação de propriedade industrial ou aos seus conceitos de direito autoral. Estariam as "marcas indígenas" devidamente protegidas pelas atuais legislações tal como estão as marcas de indústria a comércio que comumente conhecemos? Multinacionais investem milhões de dólares tentando descobrir o que os índios já sabem há centenas de anos: as propriedades curativas de plantas e raízes da floresta. E os índios nunca gastaram um centavo com isto.

Enquanto a maioria dessas questões permanece em aberto, temos, de fato, respostas para muitas delas. Temos a Constituição Federal, que, em seu artigo 231, protege os costumes, credos, tradições e direitos sobre as terras indígenas. Temos o Estatuto do Índio, que, em seus artigos 2 e 47, procura resguardar esses mesmos costumes e tradições, bem como a posse sobre as terras que habitam. Foi criada até mesmo – e muita gente desconhece – uma Comissão Indígena de Propriedade Intelectual, em maio de 2002, composta por indígenas graduados em advocacia, educação e antropologia, destinada a promover a discussão sobre temas de propriedade intelectual e conhecimentos tradicionais entre as comunidades indígenas no Brasil.

Legislação existe, ampla o suficiente para proteger nossos índios. Debates e comissões não faltam. Mas nada disso consegue evitar a morte lenta de nossas aldeias, que nem a presença de figuras ilustres como Gisele Bündchen e seu namorado DiCaprio consegue evitar.

Das mesmas plantas e raízes que são hoje alvo de calorosas discussões deveriam advir não só o alimento, mas também a cura para esses frágeis curumins, vítimas da ação desordenada do homem sobre as florestas, do derrame de poluentes nos rios, da catequização de um povo que talvez devesse ter permanecido como nos tempos de Cabral.

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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