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Meu Brasil boliviano

por Ivan B. Ahlert

26 de maio de 2006

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Exceto pela letárgica resposta do Governo brasileiro, os recentes episódios na Bolívia causaram entre nós reações quase unânimes de repulsa a medidas que, em última análise, traduziam desprezo pelo investimento que foi feito naquele país pela Petrobrás para transformar em riqueza um recurso natural que jazia inerte no subsolo. A empresa investiu na prospecção, no processamento, no transporte e no desenvolvimento de um mercado consumidor para o gás boliviano.

Subitamente, o Governo boliviano se diz explorado e espoliado em suas riquezas e resolve tomar à força propriedade daqueles que, em nossa visão, em verdade ajudaram a transformar um tesouro apenas potencial em benefícios reais para aquele país. Rasga contratos, cerca instalações com soldados e declara unilateralmente que as empresas estrangeiras terão que se enquadrar a novas normas, incluindo um aumento brutal de impostos.

E nós por aqui reagimos indignados à falta de importância que nossos vizinhos dão ao que nos parece um óbvio caminho para seu desenvolvimento e crescimento econômico.

Muito bem, agora só falta olharmos para nosso próprio umbigo.

No dia deste mês compareci ao Seminário Internacional Patentes, Inovação e Desenvolvimento que abriu o V Enitec. Me soou meio “boliviano” o tom de algumas palestras. Ainda aquela conversa antiguinha de que no século passado alguns países apenas se desenvolveram porque não reconheceram patentes a não ser após dominar certas tecnologias através da cópia. É engraçado que o Brasil não reconheceu patentes na área farmacêutica durante décadas e naquele período a única coisa que se desenvolveu foi a noção de que a falta de patentes não estimula ninguém a investir em pesquisas. Surpreendente, não? Não, apenas o óbvio ululante. Foi isto que levou nossos parlamentares – em outra legislatura, claro – a optarem de forma consciente pela antecipação das obrigações assumidas pelo Brasil através do acordo Trips. Compareci a algumas sessões públicas na Câmara dos Deputados na época em que se discutia o projeto para a nova lei de propriedade industrial, entre 1991 e 1996, e a posição em favor da volta à proteção das patentes farmacêuticas claramente predominou. Venceu o bom senso, não o lobby, até porque lobbies havia para todos os gostos e tendências.

Agora se fala da imposição de padrões de proteção que não nos interessavam. E o país se une a países ainda menos desenvolvidos e funda o grupo de “amigos do desenvolvimento”. É como se um homem pobre se juntasse a outros ainda mais pobres e fundassem juntos o grupo de amigos da prosperidade.

Tem-se falado muito na importância da inovação no processo de capacitação tecnológica e do crescimento econômico. A recentemente promulgada Lei da Inovação, Lei 10.793/04, é um marco importante nesse processo e na criação de um ambiente propício ao desenvolvimento de novas tecnologias. Mas fique claro que não há processo de inovação que se sustente sem que as criações sejam protegidas por patente. Repito: sem patentes não há como ter um processo de inovação sustentado. A lógica é evidente: se o pesquisador ou o empresário investe no desenvolvimento de novos produtos e processos e não conta com uma patente para impedir que outros ”pirateiem” sua invenção, isto cria um desestímulo à continuação da inovação.

Portanto, se queremos mesmo que o processo de inovação deslanche de vez no País, temos que acabar com o discurso dúbio de que as patentes são um mal necessário e que apenas se concedem patentes no Brasil porque os tratados internacionais nos obrigam. Paradoxalmente, esta é uma postura ideológica que encontra algum eco até mesmo dentro do INPI, órgão responsável pela análise e concessão das patentes no Brasil.

E por que isto tudo me lembra do caso boliviano? Porque ao adotar um discurso dúbio, tanto internamente quanto em fóruns internacionais, em relação ao sistema de patentes, o Brasil se coloca em posição de quem não está claramente comprometido com a proteção à propriedade (intelectual) estrangeira. A mesma reação que chegou a ser divulgada de que a Petrobrás evitaria novos investimentos na Bolívia já foi manifestada abertamente por um grande cliente estrangeiro nosso. Nas palavras dele, como o Brasil tem adotado uma postura dúbia em relação às patentes, sua empresa estaria redirecionando investimentos para outros mercados onde a propriedade intelectual seja respeitada.

Aliás, um rápido parênteses. Em recente reunião na Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI) sobre a adoção de um tratado de harmonização substantiva de leis de patentes, o Brasil voltou a manifestar sua posição, juntamente com o grupo de Friends of Development (FoD), de que novos tratados têm que considerar os diferentes estágios de desenvolvimento dos países. Até aí, nada de mais, até porque há elementos nas leis de patentes que podem ser aperfeiçoados para atender à aspiração desses países.

O problema é que a forma intransigente com que os países do FoD têm se colocado nessas discussões praticamente soterrou o processo de harmonização na OMPI. Mas, como eu já havia alertado a nosso pessoal do INPI e do Itamaraty, existe um processo paralelo de harmonização conduzido pelos países industrializados que, com o fracasso na OMPI, ganha força para levar a um tratado internacional a ser assinado inicialmente apenas por aqueles países, mas que não apenas cria um paradigma difícil de romper mais tarde, mas também em algum momento suscitará pressões para que o Brasil e outros países em desenvolvimento o ratifiquem também. Na minha modesta visão, o Brasil deu um tiro no próprio pé ao ajudar a criar um impasse na OMPI. Com isto, pode ter se excluído do processo de discussão e um dia verá o resultado das discussões entre os países desenvolvidos cair em seu colo como fait-accompli.

Uma outra frente em que nós brasileiros queremos proteger nossas riquezas com tanto afinco que ninguém consegue explorá-las é a dos recursos genéticos. Colocaram-se tantos obstáculos para se obter uma autorização para acesso aos recursos genéticos que o maléfico pesquisador estrangeiro se desinteressou de pesquisá-los e até um pesquisador brasileiro de renome como o Professor Paes de Carvalho tem dificuldades homéricas para conseguir as autorizações de que precisa para pesquisar o material que já colecionou ao longo dos anos.

De volta a nosso Brasil boliviano, concluo com duas observações: uma é que o brasileiro tem que mostrar confiança em sua própria capacidade de criação de tecnologia. O Brasil é reconhecido internacionalmente por sua significativa produção científica e o único elemento que nos falta é dar à atividade de pesquisa um direcionamento mas prático, no que a Lei de Inovação poderá ser uma ferramenta valiosa ao estimular parcerias entre entidades de pesquisa e a indústria. Patente é para o nosso bico também. A segunda observação é que quando um país sinaliza que não está disposto a proteger o investimento estrangeiro, seja ele uma refinaria de gás ou uma propriedade intangível como uma invenção, o capital estrangeiro acaba procurando outros portos mais seguros. E depois não adianta chorar. 

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Ivan B. Ahlert

Socio, Engenheiro Mecanico, Agente da Propriedade Industrial

Socio, Engenheiro Mecanico, Agente da Propriedade Industrial

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