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O xerife digital do direito autoral

por Attilio Gorini

01 de janeiro de 2008

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É errado classificar o Digital Rights Management (DRM) como um simples instrumento de proibição de cópias. Trata-se, na verdade, de um mecanismo de controle que permite, por exemplo, identificar de que cópia em celulóide um DVD pirata foi feito, com dia, hora e local. É medida eficaz contra a pirataria que assola a indústria criativa.

Muito se tem debatido sobre o DRM, que é a sigla que identifica o chamado Digital Rights Management (ou, em tradução literal para o português, "Gerenciamento de Direitos Digitais"). Fala-se que o DRM é uma afronta aos direitos dos usuários de bem que adquirem um suporte físico contendo obra protegida pelo direito autoral e que querem transportá-la para outro suporte físico. Alega-se, por outro lado, que sem o DRM, os titulares dos direitos autorais não terão qualquer forma de controle sobre a distribuição e reprodução de suas criações. A questão tornou-se ainda mais importante com o advento da televisão digital.

Entretanto, poucos sabem de verdade o que é DRM. Primeiramente, é bom lembrar que, até o final de 1982, com a introdução do CD em escala comercial, não havia a possibilidade – pelo menos não para aqueles que à época não eram experts em informática – de se copiar conteúdo de entretenimento sem perda de qualidade. Da mesma forma, até 1988, com a abertura da internet para uso comercial, era impossível fazer a disseminação instantânea de conteúdo para todo o mundo. Assim, não havia razão alguma para se temer cópias, já que elas seriam feitas necessariamente em qualidade inferior do original e não seria possível sua distribuição automática e sem muito esforço.

No entanto, a gravação em suporte digital e, principalmente, a internet mudaram rapidamente esse raciocínio. A indústria do entretenimento foi pega de assalto por tecnólogos de plantão que passaram a disseminar conteúdo digital por todo o mundo, sem se preocupar com questões de propriedade e de direito. A indústria fonográfica foi a primeira a sentir os graves problemas que essa nova realidade trouxe ao seu modelo de negócio. A indústria do audiovisual teve um pouco mais de tempo para reagir tendo em vista o tamanho dos arquivos. Hoje, no entanto, a impressionante "oferta" ilegal de suas obras é considerada, talvez, como a maior ameaça à forma atual de se fazer negócio nessa indústria.

Uma das reações mais imediatas da indústria do entretenimento para tentar controlar o livre fluxo de obras protegidas pelo direito autoral pela rede foi a criação de medidas tecnológicas de gerenciamento. Diferentemente do que muitos acham, o DRM não é necessariamente sinônimo de proibição de cópias, mas, antes de mais nada, uma medida de controle. Essa distinção se faz necessária pois, para muitos, a malfadada tentativa da indústria fonográfica em inserir um sistema de controle de cópias em CDs é, talvez, o exemplo mais contundente e conhecido de DRM. Os usuários que adquiriram tais CDs reportaram diversos problemas em sua reprodução em determinados aparelhos, apesar dos avisos feitos. O DRM já permite, por exemplo, que seja possível identificar de que cópia em celulóide de um filme um DVD pirata foi feito, com dia, hora e local. Trata-se de eficaz medida contra a pirataria que assola a indústria criativa.

Mas a proibição de cópia ou a cópia em qualidade inferior do original é, sim, uma outra forma de DRM – talvez a mais radical. A proibição de cópia pode significar, por exemplo, que se alguém adquirir legalmente um CD, não poderá transferir seu conteúdo para o HD do computador ou para um Pen Drive ou mesmo para um iPod. O usuário ficará preso ao meio físico original. Essa proibição de cópia existe, também, para obras – programas de computador e música sendo os exemplos mais notórios – baixadas direta e legalmente da internet. Tudo dependerá, na verdade, do grau de autorização que o autor ou titular dos direitos autorais concederá a quem adquire o suporte material em que sua obra está inserida.

Tendo em vista essa possibilidade tecnológica o DRM é visto como o grande vilão do "direito sagrado de copiar" que muitos defendem com unhas e dentes. Chega-se até a argumentar que seria uma violação do direito de livre expressão dos usuários, pois, ao se proibir a cópia, estar-se-ia impedindo que novas obras baseadas nas obras pré-existentes sejam criadas.

Para compreendermos a questão, temos que nos socorrer da legislação que protege o direito autoral, a Lei nº 9.609 e a Lei nº 9.610, ambas de 19 de fevereiro de 1998.

A Lei nº 9.610 (LDA), em seu artigo 7º determina que "são obras intelectuais protegidas as criações do espírito, expressas por qualquer meio ou fixadas em qualquer suporte, tangível ou intangível, conhecido ou que se invente no futuro", ou seja, protege-se, em princípio, tudo o que emana do ser humano e que seja transposto para meio físico ou não-físico. Resta saber, então, que direitos o criador terá quando materializar sua obra. Reza o artigo 22 da LDA que ao autor pertencem "os direitos morais e patrimoniais sobre a obra que criou".

Os direitos morais, elencados no artigo 24, são aqueles inerentes à pessoa humana e, por isso, não são passíveis de alienação ou renúncia (artigo 27). Entre os direitos morais encontra-se, por exemplo, o do autor em ter sempre seu nome associado à sua obra (direito de paternidade), o de impedir modificações na obra que afetem sua honra ou reputação (direito de integridade) e o de manter a obra inédita (direito do inédito).

Já os direitos patrimoniais do autor são os direitos exclusivos de utilizar, fruir e dispor de sua obra (artigo 28). A lei é ainda mais rigorosa quando trata dos direitos patrimoniais, pois deixa claro que "depende de autorização prévia e expressa do autor a utilização da obra, por quaisquer modalidades" (artigo 29). Essas modalidades incluem a reprodução, a adaptação, a tradução e a sincronização de sua obra.

Na prática, o criador de uma obra tem amplos poderes sobre ela. Se terceiros gostarem de sua obra literária e quiserem adaptá-la para a televisão ou cinema, terão que indagar do autor se ele autoriza. Qualquer ato envolvendo de alguma forma a utilização de uma obra protegida pelo direito autoral terá que ser decidido por seu criador.

Isso não quer dizer, claro, que os direitos patrimoniais sobre uma obra não possam ser transferidos integralmente para terceiros, permanecendo os direitos morais com o autor original. Na verdade, a compra-e-venda de direitos autorais é uma verdadeira mola mestra dessa indústria, que depende de conteúdo para inovar. Tanto é assim que o legislador dedicou um capítulo inteiro na LDA para o assunto (Capítulo V, artigos 49 a 52) e, apesar de ter criado algumas restrições – todas elas passíveis de disposição contratual em contrário, com exceção das obras futuras – não limitou a transferência definitiva, o que é essencial nesse meio.

O que se extrai disso tudo é que o autor de uma obra é seu mestre absoluto. Sem sua concordância expressa e segundo as condições que ele impuser, uma obra não poderá ser utilizada. Tamanho é esse poder do autor que a aquisição do original de uma obra ou de exemplar, não conferirá ao adquirente quaisquer direitos de autor se não houver estipulação contratual por escrito em contrário (artigo 37). Em outras palavras, se uma empresa adquirir uma escultura de Ernesto Neto poderá exibi-la no saguão de sua sede mas não poderá explorá-la economicamente com a distribuição, por exemplo, de calendários aos seus clientes. A autorização será sempre necessária.

Sem o controle do DRM, o autor que autorizou a reprodução de sua obra em apenas dez exemplares não saberá se ela foi reproduzida em dez mil exemplares. Ele também não terá o direito de escolher em que plataforma sua obra poderá ser utilizada e nem mesmo o que está sendo feito com sua obra e se está percebendo o valor justo por sua criação.

Valor justo? Sim, tudo ao final se reduz ao valor econômico da obra para o autor, seja ele um repentista de esquina ou uma enorme corporação titular de milhões de obras. A criação romântica de obras protegidas é algo raro de se ver e apenas uma exceção que confirma a regra da exploração econômica necessária para a manutenção do veio criativo do ser humano. É verdade que muitos criam por criar, mas mesmo esses em algum momento – a não ser que tenham meios outros de renda – precisarão sobreviver.

O que muito se fala é que o DRM inibiria o desenvolvimento pois impediria o que se denomina na legislação e doutrina norte-americana de fair use ou uso justo das obras protegidas pelo direito de autor. Esse uso justo nada mais é do que a autorização de uso de determinadas obras em determinadas circunstâncias, uma exceção à regra de proteção absoluta. Ainda que, no Brasil, o fair use não tenha sido abraçado pela legislação – o que é sensato já que o sistema de direito civil do Brasil é incompatível com o uso justo norte-americano, que exige um desenvolvimento jurisprudencial muito forte – o legislador não se esqueceu de limitar os direitos autorais.

Tais limitações, listadas no artigo 46 da LDA, incluem o uso jornalístico de obras, a reprodução de pequenos trechos de obras para fins não comerciais e outras. Muitos defendem que esses são direitos de todos, que não podem ser tolhidos pelo DRM. Nada mais equivocado. Com a devida vênia àqueles que assim acham, a lei apenas afirma que não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução de pequenos trechos sem fins comerciais. Os titulares de direitos não estão obrigados a facilitar a cópia por terceiros. A lei, aliás, determina que é ofensa aos direitos autorais a cópia integral de obras, para qualquer fim.

A mesma lei, ainda, permite expressamente que os titulares dos direitos distribuam suas obras com o DRM pois determina que responderá por perdas e danos, além da perda do equipamento utilizado quem 1- alterar, suprimir, modificar ou inutilizar, de qualquer maneira, dispositivos técnicos introduzidos nos exemplares das obras e produções protegidas para evitar ou restringir sua cópia; 2- alterar, suprimir ou inutilizar, de qualquer maneira, os sinais codificados destinados a restringir a comunicação ao público de obras, produções ou emissões protegidas ou a evitar a sua cópia; 3- suprimir ou alterar, sem autorização, qualquer informação sobre a gestão de direitos; ou 4- distribuir, importar para distribuição, emitir, comunicar ou puser à disposição do público, sem autorização, obras, interpretações ou execuções, exemplares de interpretações fixadas em fonogramas e emissões, sabendo que a informação sobre a gestão de direitos, sinais codificados e dispositivos técnicos foram suprimidos ou alterados sem autorização (artigo 107 da LDA).

Custo marginal

Sob o ponto de vista econômico, a implantação do sistema de DRM – seja proibindo cópias ou meramente permitindo a identificação da fonte das cópias infratoras – é custo que poderia eventualmente vir a ser repassado ao consumidor ou contribuinte. No entanto, o custo tende a ser marginal se comparado, por exemplo, com as perdas econômicas que a falta do DRM poderia gerar. Explica-se: sem o sistema de restrição de cópia, os titulares dos direitos sobre as obras ver-se-iam alvo da disseminação irrestrita de cópias de alta qualidade de sua propriedade intelectual. Ato contínuo, para compensar essas perdas, os titulares, então, passariam a aumentar todos os custos envolvidos na cadeia de utilização da obra. No caso da TV digital, por exemplo, o custo para a licença das obras para os canais de televisão seria aumentado, custo esse que, no caso de TV por assinatura, seria diretamente repassado ao consumidor e, no caso de TV aberta, daria ensejo a uma cadeia de aumentos que passaria pelo valor das inserções publicitárias até sua capilarização e aumento de preços dos produtos anunciados ao consumidor final. Outra hipótese seria a diminuição da oferta, em TV aberta ou mesmo por assinatura, das obras por receio da chamada pirataria.

Assim, economicamente, o consumidor até poderia vir a marginalmente pagar mais pelo DRM mas pior seriam as conseqüências que a ausência do DRM poderia acarretar.

Finalmente, fica a questão da escolha: se os titulares e autores devem determinar a forma de utilização de suas obras protegidas pelo direito autoral, eles têm que decidir se serão inseridos ou não algum mecanismo de controle ou gerenciamento. As regras de mercado que decidirão que obras com DRM são menos aceitas que as sem DRM.

O que não se pode aceitar é que se impeça o DRM sob a bandeira de que ele afeta os direitos fundamentais daqueles que se entretêm com a obra criada por terceiros. Estes precisam entender que copiar e distribuir pela internet não é um ato que simboliza anarquia e revolta contra o status quo determinado por grandes corporações mas sim um ato equivalente ao furto, que atinge mais fatal e diretamente as pessoas físicas criadoras de obras.

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Attilio Gorini

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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