por Henrique Steuer I. de Mello e Patrícia Porto
13 de outubro de 2022
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Com o aumento significativo de inovações atribuídas às IAs e os primeiros pedidos de patente nomeando sistemas de IA como inventores, surgiu a necessidade de discutir esse assunto e o seu potencial impacto.
Os pedidos apresentados aos Institutos de Marcas e Patentes (IMPs) de vários países que indicam IAs como inventoras estão forçando esses institutos a decidir sobre a aceitabilidade, ou não, de tais pedidos. Em última análise, essas autoridades têm que decidir se um sistema de IA pode ser designado como “inventor” de uma patente.
Stephen Thaler, proprietário do sistema de IA chamado DABUS – Device Autonomous Bootstrapping of Unified Sentience, representado por seu advogado Ryan Abbott, está depositando pedidos de patentes perante IMPs de vários países buscando proteção a invenções que, segundo o Dr. Thaler, foram criadas exclusivamente pelo DABUS. Nesses pedidos de patente, a IA é nomeada nas patentes como a inventora. De acordo com Ryan Abbott, “a proteção de patentes deve estar disponível para obras geradas por IA porque incentivará a inovação. A perspectiva de deter uma patente não motivará diretamente uma IA, mas incentivará algumas das pessoas que desenvolvem, possuem e usam a IA. Permitir patentes para obras geradas por IA, portanto, promoverá o desenvolvimento de IA inventiva, o que resultará em mais inovação para a sociedade”[1].
Enquanto isso, vários países se manifestaram sobre o assunto, a grande maioria sinalizando “não” – aos sistemas de IA serem “inventores” – por meio dos seus Tribunais e IMPs. O Instituto de Marcas e Patentes dos EUA(USPTO)[2], o Instituto Europeu de Patentes (EPO)[3], o Instituto de Propriedade Intelectual do Reino Unido (UKIPO)[4] e Tribunais e Institutos de outros países[5] decidiram que os pedidos de patente que nomeiam a IA como “inventora” não são aceitáveis. Geralmente, esses países argumentam que tais pedidos de patente não podem ser aceitos porque a IA não pode ser designada como “inventora” de uma patente, por falta de base legal para tal atribuição. As decisões também indicaram que, por lei, apenas uma pessoa física, ou seja, um ser humano com capacidade jurídica, teria legitimidade jurídica para ser reconhecida como inventor. O Tribunal Australiano[6], que havia aceitado, inicialmente, a IA como “inventora” em um pedido de patente, mudou a sua posição em grau de recurso. A posição do Tribunal Federal Alemão adotou um meio-termo, recusando a aceitação da IA como única inventora, mas permitindo a designação do proprietário da IA como inventor, na qualidade da pessoa que instigou ou orientou o sistema de IA a originar a invenção[7]. Até agora, a República da África do Sul[8] é o único país conhecido por ter aceitado um pedido de patente designando uma IA como “inventora”.
Mais recentemente, o Brasil se juntou ao grupo de países que dizem “não” ao reconhecimento da IA como “inventora”. A Procuradoria Federal do INPI brasileiro emitiu um Parecer Jurídico em 8 de agosto de 2022[9], declarando que não é possível indicar ou nomear a IA como “inventora” em pedidos de patente. Este último parecer esclareceu ainda que o“inventor” deve ser uma pessoa física.
O parecer jurídico foi motivado pelo pedido de patente BR 112021008931-4 (PCT/IB2019/057809), publicado em 10 de agosto de 2021, sob o título “Recipiente de alimentos e dispositivos e métodos para atrair uma maior atenção”[10], apresentando o Dr. Stephen Thaler como requerente e o DABUS como inventor. No pedido, ao lado do nome DABUS , o requerente forneceu as seguintes informações: “a invenção foi gerada de forma autônoma por inteligência artificial”.
O Instituto Nacional de Propriedade Industrial Brasileiro – INPI observando que nenhuma pessoa física foi indicada nos pedidos como inventora, seguiu com exigência de esclarecimento sobre o inventor designado. O INPI informou que, tendo em vista o artigo 6º[11] da Lei 9279/96 (LPI), pode-se inferir que oinventorao de um pedido de patente deve ser capaz de ser sujeito de direito, com capacidade jurídica. Com base nessa declaração, o instituto solicitou ao requerente que explicasse e justificasse a nomeação do DABUS como o único inventor da patente.
O requerente posteriormente argumentou que tal conceito de “inventor” não está definido na lei brasileira. O requerente argumentou ainda que, de acordo com o artigo 6º, §2º[12] da lei, o direito de requerer uma patente apenas pressupõe que o requerente seja um agente capaz, tornando irrelevante se o inventor tem ou não capacidade jurídica. Em seu raciocínio, o Dr. Thaler também argumentou que, como proprietário do DABUS, tinha direito aos bens e produtos gerados por sua propriedade, nos termos do artigo 1.232 do Código Civil Brasileiro. O requerente justificou que a única consequência na designação de um inventor não humano no pedido deveria ser a ausência de atribuição ao inventor dos direitos morais de nomeação, previstos no artigo 6º, §4º[13] da lei. Além disso, a não formação de direitos morais não significa que o direito de requerer uma patente não possa ser concedido a um titular originário. Por fim, o requerente observou que o INPI deveria aproveitar o ato das partes, conforme artigo 220 da lei.
Nos fundamentos de sua decisão, o Procurador Federal indicou como base legal do Parecer o artigo 4º ter, da União da Convenção de Paris (CUP), os artigos 6º, §2º e §4º da LPI e o acordo TRIPS, de forma em geral.
No Parecer, observou-se que, historicamente, a legislação de propriedade intelectual ignorou a possibilidade de entidades não humanas ou máquinas como autoras ou inventoras. Assinalou-se também que, quando da negociação do TRIPs, em 1994, a questão da atribuição de uma invenção a uma não-pessoa não era uma realidade no mundo.
O Procurador Federal argumentou, ainda, que o artigo 4º ter, da CUP dispõe que “O inventor tem o direito de ser como tal mencionado na patente”, de modo que somente uma pessoa física pode ser indicada como autora ou inventora.
Quanto à análise da legislação nacional, o Procurador Federal indicou que por força do o artigo 6º “é garantido ao autor da invenção o direito de obter patente que lhe garanta a propriedade”. Observou, ainda, restar evidente que, em vista do artigo 6º, §2º, “os direitos patrimoniais decorrentes podem ser objeto de cessão, estando, ainda, no âmbito da disponibilidade do inventor aliená-los”. Por fim, o Procurador Federal asseverou que, por força do artigo 4º ter da CUP, o artigo 6º, §4º, “garante ao inventor inclusive o direito de ser nomeado, ainda que tenha cedidos os direitos de exploração da patente.”
O denominador comum do conteúdo dos artigos acima mencionados é a menção de um “autor” e a “nomeação” do inventor, que pode ser interpretada implicitamente como o requisito de uma pessoa jurídica como inventora.
O Parecer concluiu que, à luz dos referidos direitos, só se pode concluir que “o inventor deve, necessariamente, ser pessoa, na acepçãodo artigo 1º do Código Civil Brasileiro”[14], ou seja, ser humano com capacidade jurídica.
Além disso, o Procurador Federal destacou que o ordenamento jurídico nacional é marcado por uma cultura antropocêntrica, influenciada pelo Iluminismo, onde o ser humano ocupa lugar central como sujeito de direitos e obrigações. Os direitos de propriedade industrial e os direitos de autor são frutos da criação humana e como tal estão sujeitos a determinados requisitos para serem concedidos. Assim, atualmente, qualquer patente desenvolvida ou gerada por um sistema de IA conflita com o sistema de proteção de direitos de propriedade industrial, principalmente porque a discussão se baseia em “o quê” ou “quem” fez a descoberta, em detrimento do resultado obtido. No entanto, o Procurador Federal afirmou que o reconhecimento da existência de direitos a um não-humano é uma tendência inevitável.
Nesse sentido, o Procurador Federal alude à necessidade de legislação específica no Brasil para regular as criações desenvolvidas por máquinas, o que provavelmente deveria ser precedido pela celebração de acordos internacionais para harmonizar o assunto.
O Procurador Federal destaca, por fim, que é necessário disciplinar legalmente o assunto e o devido reconhecimento dos direitos de propriedade industrial às criações geradas por outros agentes que não sejam seres humanos, pois impacta na preservação dos investimentos em pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, evitando desincentivos no setor.
Como resultado direto do Parecer Jurídico, o INPI publicou no boletim oficial, de 06 de setembro de 2022, a retirada do pedido de patente BR 112021008931-4 (PCT/IB2019/057809), depositado pelo Dr Thaler, com base nas conclusões do documento.
Todavia, parece que a questão crucial é se será possível a proteção por patente de criações geradas exclusivamente por IA.
As decisões da Alemanha e do Instituto Europeu de Patentes (EPO) parecem apontar para uma resposta positiva a esta questão, bem como para possíveis soluções.
Como indicamos acima, o Tribunal Alemão afirmou que uma designação revisada do inventor afirmando “Stephen L. Thaler, PhD que instigou a inteligência artificial DABUS a criar a invenção” seria permitida[15].
Na decisão do EPO, foi afirmado que “A Câmara não tem conhecimento de nenhuma jurisprudência que impeça o usuário ou o proprietário de um dispositivo envolvido em uma atividade inventiva de se designar como inventor sob a lei de patentes europeia.”[16]
Talvez, como afirma o Procurador Federal INPI, esse problema seja uma questão de política pública e deva ser resolvido pela criação de tratados internacionais para regular e harmonizar o assunto e pelo Congresso de cada país que deve editar sua legislação para dar proteção às inovações geradas porIA.
De qualquer forma, uma solução deve ser encontrada. Fica clara a relevância dos sistemas deIA para a economia e a importância de encontrar uma solução para a proteção das criações geradas por esses sistemas.. Uma pesquisa feita pela Accenture, em 2017, mostra que “A IA tem o potencial de aumentar as taxas de lucratividade em uma média de 38% até 2035 e levar a um impulso econômico de USD 14 trilhões em 16 setores em 12 economias até 2035”[17]. Ryan Abbott afirma que “não permitir a proteção de invenções geradas pelas IAs significaria que, no futuro, as empresas podem não conseguir usar a IA para inventar, mesmo quando ela se tornar mais eficaz do que as pessoas na solução de certos problemas. Esse cenário também incentivaria a manobra com institutos de patentes ao não declarar que um depósito é baseado em uma invenção gerada por IA”.[18]
De qualquer forma, antes que uma solução definitiva que permita a proteção de inovações geradas exclusivamente por IA, outras questões devem ser abordadas, como por exemplo, se as mesmas regras aplicadas para proteger invenções feitas por humanos devem ser aplicadas para conceder uma patente a uma invenção gerada por IA.
[1] ABBOTT. Ryan. The Artificial Invention Project [O Projeto de Invenção Artificial]. Revista da OMPI. Dezembro 2019.
[2] Em 2020, o USPTO indeferiu o pedido (nº 16.524.350). Em sua decisão, o Instituto declarou que uma inventora deveria ser uma pessoa física sob a interpretação do Título 35 do Código dos Estado Unidos (USC), a saber 100 (a), 101 e 115 (a).
https://www.uspto.gov/sites/default/files/documents/16524350_22apr2020.pdf.
O requerente, Dr. Thaler, procurou o Tribunal Federal dos EUA para reverter a decisão. Em primeira e segunda instâncias, a Justiça Federal negou o pedido. Na última decisão, proferida em 08 de maio de 2022, pelo Tribunal de Recursos para o Tribunal Regional Federal dos EUA (CAFC), o Tribunal confirmou as opiniões consideradas do USPTO, determinando que um sistema de IA não pode ser uma inventora. Decisão do CAFC (link): https://cafc.uscourts.gov/opinions-orders/21-2347.OPINION.8-5-2022_1988142.pdf.
[3] EPO J 0008/20. https://www.epo.org/law-practice/case-law-appeals/recent/j200008eu1.html
Nesta decisão, a Câmara de Recurso do EPO declarou que, de acordo com a Convenção sobre a Patente Europeia (EPC), um inventor designado em um pedido de patente deve ser um ser humano. Em apoio da sua decisão, o Conselho referiu-se aos artigos 60, nº 1 e 81.
[4] Na decisão O/741/19, o Instituto de Propriedade Intelectual do Reino Unido – UKIPO afirmou: “(…) o DABUS não é uma pessoa conforme previsto nas seções 7 e 13 da Lei e, portanto, não pode ser considerado um inventor. No entanto, mesmo que eu esteja errado neste ponto, o requerente ainda não tem o direito de solicitar uma patente simplesmente em virtude da propriedade do DABUS, porque uma derivação satisfatória do direito não foi fornecida.” Decisão (link): https://www.ipo.gov.uk/p-challenge-decision-results/o74119.pdf.
[5] Outros países que negaram a possibilidade de a IA ser designada como inventora: Coreia do Sul, Taiwan, Nova Zelândia.
[6] O Dr. Stephen Thaler depositou o pedido de patente número 2019363177 perante o Instituto de Marcas e Patentes (IMP) australiano. O Instituto notificou o requerente de que o pedido não estava em conformidade com o Reg. 3.2c do Regulamento de Patentes de 1991, pois não designou uma pessoa física como inventora. O Dr. Thaler recorreu ao Tribunal Federal da Austrália. O requerente obteve uma decisão favorável em primeira instância. Mas o Tribunal Federal Pleno da Austrália reformou a decisão da primeira instância, em abril de 2022. Na decisão ‘Comissário de Patentes vs Thaler [2022] FCAFC 62’, o Tribunal declarou que “Somente uma pessoa física pode ser uma inventora para os fins da Lei e Regulamentos de Patentes.”. Decisão integral (link): https://www.jade.io/article/912670.
[7] O Tribunal Federal de Patentes da Alemanha, em decisão de 11 de novembro de 2021 (publicada em 19 de abril de 2022), negou a possibilidade de a IA ser designada como inventora. No entanto, o Tribunal declarou que uma designação declarando como o inventor “Stephen L Thaler, PhD que levou a inteligência artificial DABUS a criar a invenção”, foi ermitida. Veja um comentário sobre esta decisão de James Nurton, no Blog “IP Watchdog”: https://www.ipwatchdog.com/2022/04/20/german-decision-provide-answer-ai-inventorship/id=148555/. A decisão completa em alemão está disponível aqui: https://www.ipwatchdog.com/wp-content/uploads/2022/04/DABUS-BPatG-11-W-pat-5-21.pdf
[8] A África do Sul é um país não examinador. Não há exame de mérito pelo Instituto de Marcas e Patentes (IMP) sul-africano para a concessão de uma patente, apenas um exame formal.
Número de patente 2021/03155. O documento pode ser acessado aqui:
https://iponline.cipc.co.za/Publications/PublishedJournals/E_Journal_July%202021%20Part%202.pdf , página 255.
[9] Parecer jurídico nº 00024/2022/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/inteligencia-artificial-nao-pode-ser-indicada-como-inventora-em-pedido-de-patente/ParecerCGPIPROCsobreInteligenciaartificial.pdf.
[10] Tradução livre: Food Container and devices and method to attract greater attention.
[11] Lei 9.279/96, artigo 6º: “Ao autor de invenção ou modelo de utilidade será assegurado o direito de obter a patente que lhe garanta a propriedade, nas condições estabelecidas nesta Lei.”
[12] Lei 9.279/96, artigo 6º, §2º: “A patente poderá ser requerida em nome próprio, pelos herdeiros ou sucessores do autor, pelo cessionário ou por aquele a quem a lei ou o contrato de trabalho ou de prestação de serviços determinar que pertença a titularidade.”
[13] Lei 9.279/96, artigo 6º, §4º: “O inventor será nomeado e qualificado, podendo requerer a não divulgação de sua nomeação.”
[14] Código Civil, Artigo 1º: Toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil.
[15] Tradução livre fornecida por James Nurton. NURTON, James. German Decision Could Provide an Answer to AI Inventorship [Decisão alemã pode fornecer uma resposta à invenção da IA]. IPWatchdog. 20 de abril, 2022. Disponível em: https://www.ipwatchdog.com/2022/04/20/german-decision-provide-answer-ai-inventorship/id=148555/
Neste artigo, Nurton também complementou o que foi afirmado pelo Tribunal Alemão, a respeito desta decisão: “O tribunal disse que a adição das informações sobre o DABUS na designação do inventor não era contrária ao Regulamento de Patentes. Além disso, o Instituto de Patentes e Marcas Alemão (DPMA) tem poder discricionário em relação aos dados sobre o inventor que são publicados.
De acordo com uma tradução não oficial da decisão vista pelo IPWatchdog, o tribunal disse: “na ausência de uma proibição explícita de informações desnecessárias no Regulamento de Patentes, um inventor (que também pode ser apoiado a esse respeito por seu direito pessoal como inventor) não deve necessariamente ser impedido de incluir aditamentos do tipo aqui em questão no formulário oficial P 2792.”
No entanto, o tribunal disse que não era permitido designar o DABUS como o inventor; não designar um inventor; nem adicionar “aos cuidados de Stephen L. Thaler, PhD” à designação do inventor e alterar a descrição para dizer que a invenção foi criada por uma IA chamada DABUS.”
[16] Instituto Europeu de Patentes (EPO) J 0008/20, página 27.
[17] PURDY. Mark, DAUGHERTY. Paul. How AI boosts industry profits and innovation. [Como a IA aumenta os lucros e a inovação da indústria] Accenture. 2017, página 3.
[18] ABBOTT. Ryan. Op. cit.