Biblioteca

Precisamos de uma nova lei de direitos autorais?

por Attilio Gorini e Rodrigo Borges Carneiro

30 de setembro de 2010

compartilhe

Há três anos o Ministério da Cultura vem patrocinando eventos, em diversas cidades, sobre determinados aspectos da atual Lei de Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98). Tudo começou ainda sob o comando do Ministro Gilberto Gil, em 05 de dezembro de 2007, com uma conferência intitulada "Direitos Autorais no Século XXI".

O objetivo do eventual inaugural, assim como todos os que se seguiram, foi o de levar ao público as preocupações do Ministério da Cultura sobre o atual estado da Lei de Direitos Autorais que, há época, nem 10 anos tinha. No entanto, logo no início, ficou claro que a verdadeira intenção do MinC era propor uma nova lei.

Em outubro de 2009, o MinC, já sob o comando do atual Ministro João Luiz Silva Ferreira (conhecido como Juca Ferreira), realizou um de seus últimos eventos, para efetivamente falar de um anteprojeto de nova lei de direitos autorais. Curiosamente, porém, nem os palestrantes, nem o público tiveram acesso ao texto do anteprojeto. Os palestrantes falaram apenas de pequenos trechos do anteprojeto e houve uma quase unanimidade quanto à falta de transparência do MinC.

Em 12 de junho de 2010, o MinC finalmente revelou o anteprojeto, colocando-o em processo de consulta pública até o dia 31 de agosto de 2010. Todos os comentários de interessados poderão ser "postados" no blog do Ministério.

As modificações propostas são extensas e, em alguns casos, radicais. Pode-se dizer que, em linhas gerais, o objetivo do MinC é tornar mais flexíveis as regras sobre os direitos autorais, ampliando as hipóteses em que terceiros, sem autorização dos autores e titulares, poderão utilizar obras protegidas. Há um claro viés de se privilegiar a "função social" do direito autoral, em detrimento dos criadores.

Há dois pontos importantes que foram utilizados como as principais razões para promover tamanha alteração em relativamente recente lei: (1) a proibição de se copiar um exemplar integral da obra para uso privado sem fins lucrativos, uma vez que a lei, hoje, somente permite a reprodução de pequenos trechos (artigo 46, inciso II) e (2) as diversas reclamações de músicos sobre a atuação do ECAD, escritório formado pelas associações de músicos para a cobrança de direitos autorais pela execução pública de suas obras, conforme estabelece o artigo 99 da lei atual.

Assim, há que se iniciar a análise das propostas do Ministério por esses dois pontos.

O artigo 46, inciso II, da atual Lei de Direitos Autorais estabelece que não é ofensa aos direitos autorais a reprodução, em um só exemplar, de pequenos trechos, para uso privado do copista, desde que feita por este, sem intuito de lucro. A Lei de Direitos Autorais anterior (Lei nº 5.988/73) determinava, em seu artigo 49, inciso II, que não seria ofensa aos direitos autorais a reprodução, em um só exemplar, de qualquer obra, contanto que não se destinasse à utilização com intuito de lucro.

Verifica-se, claramente, que a lei atual procurou ser bem mais restritiva ao somente permitir a cópia de "pequenos trechos" sem, porém, nunca definir o que seriam os "pequenos trechos". Na prática, a lei atual proíbe que, mesmo que um consumidor adquira legalmente um CD de música, ele transfira seu conteúdo para um aparelho reprodutor de arquivos digitais (no formato MP3, por exemplo).

Talvez se visto por esse enfoque, o artigo 46, inciso II da atual lei seja mesmo exagerado. No entanto, se imaginarmos, por exemplo, que os autores de livros didáticos sofrem com a fotocópia da integralidade de suas obras por escolas e faculdades, podemos verificar que o artigo não é tão divorciado da realidade quanto se imagina.

Obviamente, porém, há espaço para suavização, permitindo-se, por exemplo, o chamado format shifting, que seria exatamente a transposição de uma obra legalmente adquirida – ênfase no adjetivo de modo "legalmente" – para um formato alternativo, pelo próprio consumidor, sem fins lucrativos e, principalmente, claramente vedando sua disponibilização em redes de troca de arquivos pela Internet.

No entanto, essa alteração cirúrgica não justificaria uma reforma integral em lei que, em última análise, está funcionando perfeitamente. Com isso em mente, devemos partir para o outro alicerce em que se baseia o Ministério da Cultura para fazer enormes alterações na legislação: o ECAD.

O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição – ECAD é uma sociedade civil, de natureza privada, administrado por dez associações de titulares de direitos autorais e conexos sobre música, com os únicos objetivos, como o nome indica, de arrecadar e distribuir direitos autorais e conexos decorrentes da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras. As associações que formam o ECAD determinam, em assembleia, a forma e o valor das cobranças e elas são apenas executadas pelo Escritório Central.

Apesar de sua atuação em todo o território nacional, o ECAD, obviamente, não consegue fazer a cobrança de todos os valores em tese devidos e, além disso, sofre a resistência – enfrentando várias ações judiciais – de empresas e entidades que discordam da cobrança. Assim, o ECAD cumpre uma função difícil, muitas vezes tida como antipática, e ainda com elevados custos.

Como se isso não bastasse, a cadeia de distribuição é complexa, pois começa com a arrecadação pelo ECAD, que retém uma parte para cobrir seus custos, passa pelas associações, que também retêm uma parte e, finalmente, chega aos músicos. Se o músico for estrangeiro, o dinheiro ainda vai para uma associação no exterior e, só depois, chega às mãos de quem deve chegar. Como se pode esperar, o valor que alcança os autores é corroído, mas não há dúvidas que o sistema centralizado é o único que tem capacidade de suprir a demanda de um país das dimensões do Brasil.

No anteprojeto, o MinC, sob a guisa de dar maior transparência ao ECAD e à outros órgãos de arrecadação de direitos autorais, criou uma série de determinações que, em resumo, permitem um forte controle do Estado sobre, por exemplo, o quanto poderia ser cobrado pelas associações e em que circunstâncias. Vale lembrar que a Constituição Federal de 1988, no entanto, garante que a criação de associações independe de autorização, sendo proibida a interferência estatal em seu funcionamento. Ora, nada justifica, então, que o Ministério da Cultura exija o registro prévio de sociedades arrecadadoras para que seja possível a atividade de cobrança, dentre outras tentativas de regulamentação.

De toda forma, o que fica evidente é que uma eventual supervisão de sociedades arrecadadoras de direitos autorais, se realmente é possível sob o ponto de vista legal, poderia muito bem ser feita por meio de legislação específica e apartada, que complementasse a lei atual de direitos autorais.

No entanto, não foi assim que o Ministério da Cultura agiu, preferindo modificar profundamente a lei hoje em vigor e adotando conceitos que até então eram desconhecidos para a legislação brasileira de direitos autorais. Um deles é a criação do instituto das licenças não voluntárias de direitos autorais.

As licenças não voluntárias ou, simplesmente, licenças compulsórias, existem no ordenamento internacional, especificamente na Convenção de Berna, tratado sobre direitos autorais de que o Brasil faz parte. Assim, em princípio, não haveria ilegalidade alguma na regulamentação desse instituto em nosso ordenamento jurídico.

Ocorre que os casos de licença compulsória previstos por Berna são específicos e pontuais para situações como ao direito de radiodifusão e gravação de obras musicais, sendo que é expressamente proibida a licença obrigatória para o caso de obras audiovisuais.

Pela proposta, o escopo das licenças compulsórias é muito mais amplo, incluindo a tradução, reprodução, distribuição, edição e exposição de quaisquer obras, o que merece consideração, pois poderia até acarretar uma declaração de descumprimento com as obrigações assumidas internacionalmente e, também, violação das regras contidas no acordo TRIPS.

A proposta fere mortalmente os direitos autorais ao obrigar autores e titulares a participarem de um licenciamento forçado de suas obras para finalidade de reprodução total ou parcial através de fotocopiadoras ou processos assemelhados.

A única exceção que salvaguardaria os autores de participarem do sistema de licenciamento forçado seria colocar as obras à disposição do público a título gratuito, o que, convenhamos, não é uma alternativa viável e nem mesmo razoável na maioria dos casos.

Embora seja louvável que se estimule a criação de um sistema de licenciamento de obras para que estudantes possam ter acesso ao conteúdo parcial de capítulos de diversos livros regularizando o sistema de cópias clandestino existente até hoje em muitas instituições, o caminho escolhido é muito drástico. Aqueles autores que comprovarem que estão explorando suas obras no mercado não podem ser forçados a participar.

Além disso, as condições para concessão de licença compulsória são muito vagas com termos imprecisos como "recusar de forma não razoável" ou "criar obstáculos à exploração da obra".

A proposta também não possibilita o término da licença quando o autor ou titular dos direitos comprovar que cessaram as condições que deram motivo a concessão da licença.

No capítulo de limitações aos direitos autorais, são introduzidas igualmente diversas hipóteses que ultrapassam um legítimo equilíbrio entre os direitos dos autores e da sociedade, pretenso objetivo da proposta, causando um dano real aos titulares.

Por exemplo, o inciso XVII do artigo 46, conforme a proposta, possibilita a reprodução, sem finalidade comercial, de obra literária, fonograma ou obra audiovisual, cuja última publicação não estiver mais disponível para venda, pelo responsável por sua exploração econômica, em quantidade suficiente para atender à demanda de mercado, bem como não tenha uma publicação mais recente disponível e, tampouco, não exista estoque disponível da obra ou fonograma para venda.

Essa limitação seria automática e não vem acompanhada de nenhuma obrigação de se contatar previamente os autores ou titulares para que possam apresentar defesa ou mesmo suprir a demanda. Pode ser que a obra esteja em vias de ser relançada e o titular ou seu editor vai ser pego de surpresa com o lançamento por terceiros que, mesmo sem finalidade comercial, inviabilizaria sua empreitada.

Outra limitação injustificada é a que permite a reapresentação teatral, recitação declamação, exibição audiovisual e execução musical no interior dos templos religiosos e exclusivamente no decorrer de atividades litúrgicas bem com em "associações cineclubistas" para finalidade de difusão cultural ou multiplicação de público.

Porque os autores devem forçosamente abrir mão de sua remuneração para finalidade religiosa? Qual a base para tanto quando é sabido que muitas congregações religiosas são multibilionárias?

Porque os autores ou titulares têm que permitir graciosamente a exibição de obras por cineclubes com propósito de difusão cultural? Isso é pura demagogia populista, o famoso jogo para a platéia ou, na linguagem popular, "dar esmola com chapéu alheio". Porque o Estado não toma para si a responsabilidade de obter e pagar as devidas licenças? Não, claro que não. É mais fácil suprir a ausência do Estado retirando o direito dos autores ou titulares.

A mesma falta de equilíbrio vale para a questão dos portadores de deficiências. A proposta possibilita a reprodução, a distribuição, a comunicação e a colocação à disposição do público de obras para uso exclusivo de pessoas portadoras de deficiência, sempre que a deficiência implicar, para o gozo da obra por aquelas pessoas, necessidade de utilização mediante qualquer processo específico ou ainda de alguma adaptação da obra protegida, e desde que não haja fim comercial na reprodução ou adaptação.

Notem que a exceção pretendida é automática e não considera o fato de que o autor pode já ter disponibilizado uma edição comercial que atenda a esse público. Mesmo nesse caso, ele seria forçado a permitir a distribuição gratuita.

Preocupante também a possibilidade de se colocar a disposição do público obras que integrem as coleções de museus e bibliotecas por qualquer meio ou processo, inclusive através de suas redes "fechadas" de informática. Qual seria a permissão necessária para ingressar em uma rede "fechada" de informática de uma biblioteca? Um cadastro prévio? Na prática essa exceção seria praticamente impossível de controlar e possibilitaria uma concorrência desleal com os autores e titulares de direitos.

A proposta possui, ainda, uma cláusula de limitação aberta no parágrafo único do artigo 46 que dispõe que, além dos (vários) casos previstos expressamente neste artigo, também não constitui ofensa aos direitos autorais a reprodução, distribuição e comunicação ao público de obras protegidas, dispensando-se, inclusive, a prévia e expressa autorização do titular e a necessidade de remuneração por parte de quem as utiliza, quando essa utilização for:

I – para fins educacionais, didáticos, informativos, de pesquisa ou para uso como recurso criativo; e

II – feita na medida justificada para o fim a se atingir, sem prejudicar a exploração normal da obra utilizada e nem causar prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

A existência de uma cláusula aberta já introduz um elemento de incerteza que no caso é potencializado com a expressão "para uso como recurso criativo". Recurso criativo pode ser a desculpa para qualquer ato de violação. Além disso, cumpre lembrar que, se for mesmo um recurso criativo dando ensejo a uma nova obra, não haveria necessidade de isso constar da limitação. Obras novas são obras novas, com proteção apartada, desde que não viole direitos de terceiros.

Por fim, a proposta de lei "coloca o direito autoral de pernas para o ar" ao punir os titulares que tentarem discutir seus direitos nos casos das limitações com as mesmas penalidades que seriam aplicáveis aos violadores de direitos autorais.

Parece que o Ministério da Cultura elegeu o autor como o vilão dos problemas da cultura e decidiu proteger a sociedade desse malfeitor.

compartilhe

Attilio Gorini

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

saiba +

Rodrigo Borges Carneiro

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

saiba +

posts relacionados

busca