por Sandra Leis
01 de outubro de 2006
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O PARTE I – INTRODUÇÃO
Não há dúvida quanto à importância da propriedade intelectual no contexto atual das negociações internacionais, nos tratados de livre comércio e no âmbito da Organização Mundial do Comércio (doravante, OMC). No entanto, antes de se falar sobre esse ponto, há que se entender o porquê da inserção da propriedade intelectual em tal contexto, já que, para muitos, comércio internacional e propriedade intelectual podem parecer temas completamente distintos.
Com o desenvolvimento do comércio, da indústria, dos meios de transporte e comunicação, principalmente a partir do século XIX, houve um aumento do fluxo de mercadorias, pessoas e informações entre Estados, fazendo com que suas fronteiras se tornassem mais permeáveis. Os comerciantes perceberam a importância de proteger as marcas dos seus produtos não só no mercado local mas também trans-fronteiras; a indústria, detentora de uma invenção, queria para si exclusividade de uso e auferir benefícios com sua exploração; o escritor queria proteger sua obra e ter alguma garantia de que seu trabalho não seria copiado ou utilizado indevidamente. As legislações dos Estados, antes rígidas e restritas aos seus cidadãos, tiveram que se flexibilizar para atender à essa nova realidade.
Foi assim que, em 1843, surgiu o Tratado de Comércio Franco-Sardo, que já incluía temas de propriedade industrial. A seguir vieram a Convenção de Paris, em 1883, e a Convenção de Berna, em 1886, que tinham por objetivo uma internacionalização e uma certa harmonização das normas sobre propriedade industrial e direitos de autor. Essas Convenções permanecem em vigor até hoje.
Após a Segunda Guerra Mundial, com o mundo em reconstrução e a retomada do comércio internacional, se propôs a criação de uma organização que regulasse as questões tarifárias entre países, a OIT – Organização Internacional do Comércio, mas essa proposta não logrou êxito por imposição norte-americana. Em seu lugar, surgiu o GATT – General Agreement on Tariffs and Trade.
Da mesma forma, sentiu-se necessidade de se criar uma organização para tratar das questões relativas à propriedade intelectual dentro da nova realidade do pós-guerra, pois as Uniões de Paris e Berna já se mostravam insuficientes. Assim, foi criada a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), em 1967, com sede em Genebra, Suíça.
A interseção entre comércio e propriedade intelectual já se fazia sentir no GATT, que incorporava algumas normas sobre a matéria . Foi, porém, na Rodada de Negociações Multilaterais iniciada em Punta Del Este, em 1986, conhecida como Rodada Uruguai do GATT, que a propriedade intelectual ganhou maior ênfase e amplitude, principalmente devido à pressão dos Estados Unidos, Europa e Japão.
Após oito anos de discussões, a Rodada Uruguai culminou com a assinatura de uma Ata Final por 114 países, e a criação da OMC (Organização Mundial do Comércio), em substituição ao GATT. O acordo constitutivo da OMC, também conhecido como Acordo de Marrakesh, por sua vez, incorporava uma série de acordos multilaterais em diversas áreas, dentre eles o Acordo TRIPS , para a área de propriedade intelectual, constante do Anexo IC.
PARTE II – O TRIPS
Embora o TRIPS tenha sido assinado em 15/04/1994, ele previa períodos diferenciados para sua entrada em vigor nos países membros, de acordo com os níveis de desenvolvimento desses países . Para os países desenvolvidos, o TRIPS entrou em vigor em 01/01/1995; para os países em desenvolvimento, previu-se um período de transição de 5 anos , e, para os países subdesenvolvidos, foi concedido um período de 10 anos para a aplicação das disposições do Acordo.
O Acordo TRIPS é formado por sete partes: Disposições Gerais e Princípios Básicos; Padrões Relativos à Existência, Abrangência e Exercício de Direitos de Propriedade Intelectual, compreendendo direitos de autor, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, topografias de circuitos integrados, proteção de informação confidencial e concorrência desleal; Aplicação de Normas de Proteção dos Direitos de Propriedade Intelectual, que se refere às medidas e procedimentos que visam a garantir o cumprimento das normas do Acordo; Obtenção e Manutenção de Direitos de Propriedade Intelectual e Procedimentos Inter-Partes Conexos; Prevenção e Solução de Controvérsias; Arranjos Transitórios, e Arranjos Institucionais/Disposições Finais.
O TRIPS estabelece padrões mínimos de proteção à propriedade intelectual, dando uma certa flexibilidade aos países membros para legislar sobre a matéria, desde que respeitada essa proteção mínima. O TRIPS não derroga, contudo, as Convenções anteriores como as Convenções de Paris, Berna e Roma.
Alguns dos princípios básicos do TRIPS são: o do single undertaking, ou seja, o Acordo deverá ser aceito na sua totalidade, sem exceções; o do tratamento nacional, que procura evitar discriminação entre nacionais e estrangeiros; o da nação mais favorecida (uma vantagem concedida a um país-membro deverá ser estendida aos demais membros); transparência e cooperação entre os membros.
Cabe ao Conselho de TRIPS assegurar a implementação e cumprimento das normas do Acordo, através do Órgão de Solução de Controvérsias da OMC. Na área de propriedade intelectual esse Órgão tem examinado, sobretudo, controvérsias relativas à aplicação do TRIPS (enforcement) na área químico-farmacêutica e de direitos de autor.
Controvérsias, aliás, não faltam em relação ao TRIPS. Os países desenvolvidos, com sua indústria forte, detentora de direitos de propriedade intelectual, buscam alargar a proteção conferida em TRIPS, principalmente em matéria de patentes e direitos de autor, estabelecendo-se as chamadas normas TRIPS-plus. Não logrando êxito no âmbito multilateral, esses países incorporaram tais normas em acordos bilaterais.
Um dos temas mais controvertidos nos últimos anos tem sido a questão do licenciamento compulsório de patentes. O TRIPS prevê, em seu artigo 31, a possibilidade de se licenciar uma patente compulsoriamente, "em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não-comercial". O TRIPS, porém, não define o que sejam situações de "extrema urgência" ou de "emergência nacional", o que também gera polêmica.
Daí nasce o embate entre a indústria farmacêutica, que busca uma compensação pelo seu investimento de milhões de dólares em pesquisas, que, muitas vezes, duram mais de uma década, e os países de menor desenvolvimento, que enfrentam graves problemas de saúde pública e não têm condições de produzir ou comprar tais medicamentos. A licença compulsória funciona, assim, como instrumento de barganha para que os detentores de patentes reduzam os preços dos medicamentos ao invés de terem as suas patentes licenciadas compulsoriamente.
Outro problema que se apresenta é a incapacidade da indústria local de muitos países de produzirem tais medicamentos, tornando, portanto, o mecanismo da licença compulsória completamente ineficaz. Com o intuito de resolver essa questão, notadamente naqueles países mais afetados pela AIDS, tuberculose e malária, os membros da OMC adotaram uma declaração durante a Conferência Ministerial da OMC em Doha, no Qatar, em 2001, incumbindo o Conselho de TRIPS de buscar uma solução para esse problema . Finalmente, em 30 de agosto de 2003, ocorreu a implementação do Parágrafo 6 da Declaração de Doha, que permitiu o licenciamento compulsório não só para suprir o mercado interno, conforme estabelece o artigo 31 (f) de TRIPS, mas também para exportar para aqueles países afetados por problemas de saúde pública mas sem capacidade de produzir os medicamentos necessários.
Cumprida essa etapa, só faltava promover a emenda ao Acordo TRIPS, em consonância com a decisão de 2003 pré-citada. O assunto voltou a ser discutido na Reunião Ministerial de Hong Kong, em dezembro de 2005, e de lá surgiu uma proposta de emenda ao TRIPS, que deverá ser ratificada pelos membros até 1º de dezembro de 2007.
Outro tema na área de propriedade intelectual que tem sido muito debatido no âmbito da OMC é a questão da proteção às indicações geográficas, objeto da Seção 3 do TRIPS.
A agenda da Rodada de Doha prevê a criação de um sistema multilateral de notificação e registro de indicações geográficas para vinhos e destilados assim como a discussão a respeito de uma possível extensão da proteção conferida no artigo 23 de TRIPS para outros produtos, que não vinhos e destilados, como, por exemplo, queijos, chás, etc. A União Européia, como grande detentora de indicações geográficas, defende, junto com alguns outros países, uma emenda ao TRIPS, a fim de obter proteção maior para esses outros produtos e reivindica, ainda, a retomada do uso exclusivo de indicações geográficas que se tornaram de uso genérico ou são usadas como marcas. Este tema vinha sendo discutido no âmbito das negociações agrícolas da OMC, atualmente paralisadas.
Ainda sobre indicações geográficas, vale citar que, em março de 2005, o Órgão de Solução de Controvérsias da OMC emitiu decisão sobre um painel aberto pelos Estados Unidos contra a União Européia (UE), onde eles questionavam se as leis da UE desrespeitavam o TRIPS. O tema central era a proteção das indicações geográficas em relação a marcas semelhantes previamente registradas . O painel gerou uma decisão interessante, onde ambas as partes se sentiram vitoriosas, pois, ao mesmo tempo em que o painel aceitou argumentos trazidos pelos Estados Unidos, também considerou válidos outros pontos de vista da União Européia. Esta decisão certamente refletirá nas negociações multilaterais relativas a essa matéria.
Cabe aqui, também, chamar a atenção para um outro ponto de interseção entre a OMC e a propriedade intelectual, que é a questão da proteção à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais a ela associados. O Brasil, detentor da maior biodiversidade do planeta, tem, obviamente, grande interesse na matéria e, por isso, apresentou, juntamente com a Índia e outros países em desenvolvimento, proposta junto à OMC defendendo uma emenda ao TRIPS que torne obrigatória, para a concessão de uma patente, a identificação da origem do material genético, o consentimento do detentor de tal material e a repartição dos benefícios auferidos com a exploração de tais recursos genéticos, conforme prevê a Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB). Esses países alegam que há uma discrepância entre o TRIPS e a CDB. Essa matéria encontra-se ainda em discussão.
CONCLUSÃO
O Brasil e outros países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos têm sido alvo de pressões, principalmente por parte dos Estados Unidos, no tocante ao enforcement dos direitos de propriedade intelectual, ou seja, a adoção de medidas efetivas para a proteção desses direitos. Através da Special 301, a Representação de Comércio dos Estados Unidos (USTR) pode colocar determinado país em uma lista de observação e, se verificar que aquele país não está dando proteção adequada a direitos de propriedade intelectual, poderá retirá-lo do Sistema Geral de Preferências (SGP), através do qual um país se beneficia de tarifas de importação reduzidas. Essa prática de vincular questões comerciais à proteção de direitos em outras áreas, como propriedade intelectual, é condenada pela OMC e pelas próprias regras do SGP.
Os Estados Unidos têm "monitorado" e ameaçado o Brasil com a suspensão dos benefícios do SGP caso não combata adequadamente a pirataria. Graças aos esforços dos órgãos brasileiros envolvidos no combate à falsificação de produtos, o Governo norte-americano vêm prorrogando sucessivamente os prazos para adoção de medidas mais drásticas e têm suspendido as ameaças de retirar o Brasil do SGP, enquanto estiverem sendo tomadas medidas anti-pirataria.
Este é apenas um exemplo da forte interseção que há, atualmente, entre proteção da propriedade intelectual e as questões comerciais. Por causa disso, cresce a importância do TRIPS como instrumento para fazer valer os direitos daqueles países economicamente mais fracos e com pouco poder de barganha frente aos países mais ricos e desenvolvidos.
O TRIPS acaba de completar dez anos de existência, embora para alguns países ainda esteja em fase de implementação. Muitos aproveitam esse momento para questionar sobre os seus benefícios e sobre o seu futuro.
Não há dúvida de que o TRIPS possibilitou a inserção da propriedade intelectual no sistema multilateral de comércio. Dentre os benefícios, apontados estão: a maior segurança jurídica para as empresas, notadamente as multinacionais, na medida em que podem contar com a proteção de suas marcas e patentes nos demais países; mais investimentos e desenvolvimento econômico, decorrentes dessa segurança jurídica; disponibilização de um mecanismo de solução de disputas, que, mesmo com suas falhas, ainda é preferível a um acordo bilateral, principalmente quando a disputa se dá entre um país desenvolvido e um país subdesenvolvido ou em desenvolvimento.
Por outro lado, embora o TRIPS estabeleça, em seu artigo 66, que "os paises desenvolvidos Membros concederão incentivos a empresas e instituições de seus territórios com o objetivo de promover e estimular a transferência de tecnologia aos países de menor desenvolvimento relativo Membros", pouco tem sido feito nesse sentido. Da mesma forma, a cooperação técnica entre países desenvolvidos e países de menor desenvolvimento, prevista no artigo 67, ainda é incipiente.
O TRIPS prevê, ainda, em seu artigo 7, que a proteção dos direitos de propriedade intelectual deve contribuir para a promoção do bem-estar social econômico, ou seja, promover o desenvolvimento. No entanto, a proteção da propriedade intelectual por si só não promove desenvolvimento. Ela é apenas um componente da complexa engrenagem do desenvolvimento, que exige, entre outros, políticas públicas corretas, investimento em infra-estrutura, incentivos fiscais, etc. Somente combinado com esses outros fatores é que o TRIPS será uma ferramenta para o desenvolvimento e a Rodada de Doha, temporariamente suspensa, poderá fazer jus ao nome que recebeu de "Rodada do Desenvolvimento".
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