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Acordo da Alca e propriedade intelectual

por Sandra Leis

08 de setembro de 2004

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Muito se tem falado sobre as conturbadas negociações para a formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Quase sempre se toca no problema das pressões americanas na área de propriedade intelectual, que visam incluir no texto do acordo dispositivos que beneficiam sua indústria farmacêutica e que excedem o que dispõe o Acordo Trips, da Organização Mundial do Comércio (OMC) – os chamados "Trips Plus". Os Estados Unidos são acusados de querer estender prazos de proteção das patentes, vinculando-os à concessão de licença para a comercialização de produtos farmacêuticos, de prejudicar a indústria de genéricos e de impedir que a população menos favorecida tenha acesso a medicamentos mais baratos.

Há também os que pensam que discutir propriedade intelectual na Alca é perda de tempo, pois esse tema deveria ser tratado na OMC. De fato, na sua proposta dos "três trilhos" o Brasil já defendia a retirada desse tema das negociações da Alca, considerando a OMC o ambiente ideal para a discussão, tanto pela participação de um maior número de países como pelo respaldo do Acordo Trips. Porém, ainda que alguns não queiram, a propriedade intelectual continua presente na Alca e nem a reestruturação das negociações formulada em Miami, em novembro último, conseguiu retirá-la.

Vale lembrar, porém, que a propriedade intelectual na Alca não se limita às patentes. Somente a parte de disposições substantivas compreende onze temas específicos: marcas, indicações geográficas, direitos de autor, patentes, informação não-divulgada, modelos de utilidade, desenhos industriais, variedades vegetais, concorrência desleal e práticas anti-competitivas em licenças contratuais e até mesmo folclore e conhecimentos tradicionais. Além destes, há disposições gerais e questões de observância, com procedimentos cíveis e criminais.

O capítulo de propriedade intelectual da Alca contém, por exemplo, um artigo que diz que os países membros deverão "envidar os maiores esforços" para aderir a certos acordos internacionais dentro de um ano a partir da entrada em vigor da Alca, inclusive ao Protocolo de Madri. O Protocolo de Madri é um tratado que permite estender a proteção de uma marca a todos os países signatários mediante um único registro da marca, feito através da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi). Quem milita na área sabe que a adesão do Brasil a esse protocolo é objeto de muita controvérsia, tanto por questões constitucionais quanto práticas. Uma delas é o esperado aumento de pedidos de registro de marca vindos de outros países. Estaria o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) preparado para lidar com essa situação em 2006 ou mesmo 2007? É notório que o INPI se encontra em situação extremamente difícil, com cerca de 500 mil pedidos de marca aguardando exame, número insuficiente de funcionários e precária estrutura. Mesmo que a reestruturação anunciada pela nova administração se concretize, dificilmente o INPI estaria em condições de atender às exigências advindas do Protocolo de Madri num prazo tão curto.

O capítulo de propriedade intelectual da Alca prevê, também, que os países membros deverão aplicar normas de vários acordos internacionais, inclusive o Tratado sobre Direito de Marcas ("Trademark Law Treaty", ou TLT). O artigo 3 (7) desse tratado estabelece que as partes não poderão exigir que o ramo de atividade do requerente de uma marca tenha relação com o produto ou serviço a ser protegido. Essa regra é totalmente contrária à nossa Lei de Propriedade Industrial, que exige que a atividade do requerente cubra os produtos ou serviços assinalados pela marca. Portanto, se for aprovado o texto atual do acordo da Alca, o Brasil deverá aderir ao TLT e permitir que se registrem marcas para quaisquer produtos e serviços, mesmo que não tenham relação com a atividade do titular. O depósito de marcas sem vinculação entre a atividade do requerente e os produtos ou serviços cobertos pela marca é campo fértil para fraudes e extorsões, a exemplo do que já ocorre com os nomes de domínio, que são registrados por qualquer um para depois serem oferecidos aos legítimos interessados a preços exorbitantes.

Na seção relativa a direitos de autor também existem propostas curiosas, como a que desvincula a duração da proteção de uma obra literária da vida do autor, em choque com não só com a nossa Lei de Direitos Autorais mas, sobretudo, com a Convenção de Berna, que congrega mais de 150 países.

Esses são alguns poucos exemplos de questões importantes contidas na minuta do acordo da Alca. Existem muitas outras igualmente preocupantes e que, por isso, devem ser consideradas no momento de se estabelecer o "conjunto comum e equilibrado de direitos e obrigações, aplicáveis a todos os países", previsto na Declaração de Miami. 

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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