Biblioteca

Direito do usuário anterior de boa-fé: INPI muda entendimento e arguição do direito de precedência ao registro de marca também é possível em sede de processo administrativo de nulidade

por Enzo Baiocchi

22 de novembro de 2021

compartilhe

Foi aprovado e publicado na Revista da Propriedade Industrial nº 2652, de 03/11/2021, o Parecer[1] com efeito normativo da Procuradoria Federal Especializada junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI que torna possível a arguição do direito de precedência ao registro de marca por parte de usuário anterior de boa-fé, nos termos do § 1º, do artigo 129, da Lei 9.279/1996 (Lei de Propriedade Industrial – LPI)[2], em todas as etapas da via administrativa, incluindo o processo administrativo de nulidade de registro (PAN).

Esse dispositivo representa uma exceção ao princípio atributivo do Direito de Marcas adotado pela LPI, segundo o qual o direito de propriedade industrial só é adquirido após a concessão do registro, conforme disposto no caput do artigo 129, da LPI, assegurando-se ao titular o uso exclusivo da marca registrada em todo o território nacional.

A exceção a essa regra geral é denominada direito de precedência ou direito do usuário anterior de boa-fé.

Até então, a posição do INPI estabelecida no Manual de Marcas (3ª edição, 4ª revisão, de 12/01/2021) tinha como embasamento pareceres anteriores da Procuradoria Federal Especializada que entendiam que o reconhecimento do direito de precedência somente poderia ocorrer até a concessão do registro da marca, ou seja, até a fase de oposição a pedido de registro.

O INPI não admitia, portanto, que esse reconhecimento pudesse ocorrer em sede de processo administrativo de nulidade, nem concordava com o pleito se ele fosse formulado em sede de ação judicial.

De acordo com a sistemática anterior, de modo a fazer valer o direito de precedência ao registro, o requerente deveria apresentar oposição ao pedido de registro formulado por terceiros com provas suficientes para caracterizar o uso anterior e de boa-fé (como documentos, notas fiscais e outros meios de prova), além de realizar o depósito do pedido de registro da sua marca.[3]

No entanto, em que pese o entendimento firmado pelo INPI, a Lei de Propriedade Industrial não faz qualquer referência específica, tampouco limita o reconhecimento do direito de precedência à determinada etapa na instância administrativa. Logo, não havendo limitação expressa em lei, o interessado pode reivindicar o seu direito a qualquer tempo até esgotar a via administrativa ou, ainda, perante o Poder Judiciário, em sede de ação de nulidade de registro de marca.

O Parecer cita a obra coletiva do Instituto Dannemann Siemsen com os comentários sobre o artigo 129, da LPI:

O dispositivo trata da aquisição de direitos sobre a marca e confirma, a exemplo dos Códigos anteriores, o sistema atributivo como o modo pelo qual o titular assegura o direito de propriedade sobre o signo distintivo. Isto significa que, no Brasil, o direito de uso exclusivo sobre a marca e a consequente prerrogativa de impedir terceiros de utilizarem sinais iguais ou semelhantes em meio a produtos ou serviços congêneres são adquiridos através de um registro validamente expedido, e não pelo uso, conforme se dá nos países adeptos do sistema declarativo, como os Estados Unidos da América. A exclusividade sobre a marca, portanto, em regra, cabe a quem primeiro registra perante o Inpi. Por outro lado, atento à umbilical ligação entre os direitos da propriedade industrial e os princípios repressores da concorrência desleal, institui algumas exceções à regra geral. Assim, embora considere o registro uma formalidade obrigatória para a obtenção da propriedade sobre o signo distintivo e dos seus respectivos corolários, a Lei confere diversas ferramentas de proteção aos titulares de marcas ainda não registradas perante o órgão competente.[4]

Considerando a decisão da Presidência do INPI de conferir efeito normativo ao Parecer, o novo regramento já está em vigor. Isso porque ocorreu a revogação tácita das disposições do Manual de Marcas, já que o referido Parecer passa a regular inteiramente a matéria que antes era tratada de maneira diversa no Manual[5], independentemente de sua nova edição ou revisão.

A mudança de posição institucional da Autarquia, com a revisão do procedimento anterior, está, a partir de agora, em sintonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria (por exemplo, REsp 1.464.975-PR[6] e REsp 1.673.450-RJ[7]).

Desde final de 2016, o STJ já havia consolidado entendimento no sentido de admitir a possibilidade de reconhecimento do direito de precedência a qualquer tempo, quer dizer, mesmo após a concessão do registro de marca pelo INPI, seja pela via administrativa em sede de PAN, seja pela via judicial com ação de nulidade de registro de marca, desde que respeitado o prazo prescricional previsto no artigo 174 da LPI[8].

É bem-vinda, portanto, a mudança de posicionamento do INPI, já que coloca os procedimentos administrativos da Autarquia em sintonia com a LPI e com a jurisprudência do STJ.

 

[1] Parecer nº 00043/2021/CGPI/PFE-INPI/PGF/AGU, de lavra do Procurador Federal Marco Fioravante Villela Di Iulio, Coordenador-Geral Jurídico de Propriedade, de 22/09/2021. Disponível em: https://www.gov.br/inpi/pt-br/central-de-conteudo/noticias/copy_of_ComunicadosRPI2652.pdf.

[2] In verbis: “Toda pessoa que, de boa-fé, na data da prioridade ou depósito, usava no País, há pelo menos 6 (seis) meses, marca idêntica ou semelhante, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, terá direito de precedência ao registro”.

[3] V. item 2.4.3 do Manual de Marcas do INPI (3ª edição, 4ª revisão, de 12/01/2021). Disponível em: https://manualdemarcas.inpi.gov.br/.

[4] IDS – Instituto Danneman Siemsen de Estudos Jurídicos e Técnicos. Comentários à lei da propriedade industrial. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2013, p. 298-299.

[5] V. item 5.12.6 (Oposição com base no § 1º do art. 129 da LPI).

[6] Recurso Especial nº 1.464.975-PR (2014/0160468-6), Rel. Ministra Nancy Andrighi, data do julgamento (por unanimidade): 01/12/2016. Inteiro teor disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1558771&num_registro=201401604686&data=20161214&peticao_numero=-1&formato=PDF. Sobre a decisão, v. o artigo publicado pelo advogado Felipe Dannemann Lundgren, em 23/08/2017, disponível em: https://ids.org.br/stj-profere-importante-acordao-sobre-momento-para-arguicao-do-uso-anterior-de-marca/.

[7] Recurso Especial nº 1.673.450-RJ (2017/0055508-4), Rel. Ministra Nancy Andrighi, data do julgamento (por unanimidade): 19/09/2017. Inteiro teor disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ITA&sequencial=1636047&num_registro=201700555084&data=20170926&peticao_numero=-1&formato=PDF.

[8] In verbis: “Prescreve em 5 (cinco) anos a ação para declarar a nulidade do registro, contados da data da sua concessão”.

compartilhe

Enzo Baiocchi

Coordenador Academico

Professor de Direito Comercial na UERJ e UFRJ, onde tambem leciona Direito da Propriedade Intelectual e Direito da [...]

saiba +

posts relacionados

busca