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A OMC na Era dos Blocos Econômicos

por Sandra Leis

01 de outubro de 2003

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O mundo sempre esteve dividido, senão em todas, em quase todas as fases da história, e essa polarização sempre teve como pano de fundo as questões comerciais e de acesso a mercados.

Nos séculos XV e XVI o mundo estava dividido entre portugueses e espanhóis, que tentavam, com suas caravelas, descobrir terras distantes. Uns partiram a oeste e encontram um continente, que chamaram de América. Outros ventos os levaram a leste e lá se depararam com terras exóticas conhecidas como Índias. Por sua vez, as correntes do Atlântico levaram os portugueses rumo ao sul, onde encontraram uma terra grande e formosa, à qual, por razões que a história explica, chamaram de Brasil. Todas essas incursões, verdadeiramente arriscadas para a época, tinham como principal objetivo a busca por terras e riquezas e o acesso a novos mercados, principalmente os do Oriente.

Por conta disso, o mundo ficou dividido entre portugueses e espanhóis, separados pelo Tratado de Tordesilhas. E na esteira disso tudo vieram todos os Filipes, Luízes e Henriques, enfim todo o reluzente poder das monarquias absolutistas.

Mais tarde, veio a Revolução Industrial e com ela a reformulação de conceitos sócio-econômicos, e aí se fez presente, mais uma vez, a necessidade de conquistar mercados, além de fontes de matéria-prima para a promissora indústria. Era preciso arrebanhar mão-de-obra e matérias-primas baratas, muito carvão para alimentar as máquinas a vapor e muita gente para consumir os que as indústrias produziam. Daí surgiu novamente a polarização e o mundo ficou dividido entre países industrializados e países não-industrializados.

A Revolução Industrial criou uma dicotomia capital-trabalho, que, por sua vez, acarretou profundas transformações sociais e fez nascer novas ideologias. E na esteira disso tudo vieram Marx, Lenin, Stalin, e depois Hitler, Mussolini e as grandes guerras. O mundo ficou, então, dividido entre comunistas e capitalistas.

Em 1989 caiu o muro de Berlim e, com ele, foi aos poucos se desfazendo aquela polarização rígida Ocidente-Oriente, para dar lugar a uma abertura, uma permeabilidade entre povos e nações, em todos os aspectos da vida cotidiana, a que chamamos de globalização. Não se pode, porém, pensar que, por causa da globalização, os países se deram as mãos e se integraram de forma tão harmônica a evitar novas polarizações, como aquelas que experimentamos ao longo da história.

O mundo continua dividido, só que de maneira diferente. Além da fragmentação em virtude de crenças religiosas, há a fragmentação com base em conceitos econômicos, que é tão ou mais grave que a primeira. Em vez de grandes monarquias, temos os "países ricos"; em vez de países não-industrializados, temos os "países subdesenvolvidos" e, para os indecisos, recorreu-se ao eufemismo, chamando-os de "países em desenvolvimento". E não pára por aí. As últimas décadas testemunharam a divisão desses grandes grupos em sub-grupos, sempre tendo como força motriz a questão do comércio e a busca por novos mercados.

Primeiramente, surgiu o seleto grupo G-7, formado pelos 7 países mais ricos do mundo (Estados Unidos, Grã-Bretanha, Alemanha, Canadá, França, Japão e Itália), que passou a se chamar G-8 com a entrada da Rússia. A questão crucial de acesso a mercados para produtos agrícolas fez surgir o Grupo de Cairns, formado pelos 18 principais exportadores agrícolas. Recentemente, os impasses decorrentes das negociações da Rodada de Doha nos trouxeram outros Gs.

Como se sabe, as negociações agrícolas não tiveram praticamente nenhum avanço desde o encontro de Doha, em 2001, devido à sua complexidade e à dificuldade de se obter um consenso num cenário tão fragmentado. Na tentativa de impulsionar as negociações, em fevereiro de 2003 Stuart Harbinson, Presidente do Comitê Agrícola da OMC, colocou sobre a mesa a sua proposta, na tentativa de conciliar esses interesses divergentes, mas houve, novamente, uma polarização: de um lado a União Européia e, de outro, os Estados Unidos e o Grupo de Cairns, que inclui o Brasil. A proposta foi rejeitada. Mais tarde, em junho do mesmo ano, a Proposta Harbinson foi reapresentada na reunião Mini-Ministerial em Sharm el-Sheikh, no Egito, não se chegando, no entanto, a uma posição conclusiva. Na Reunião Mini-Ministerial de Montreal, em julho, o tema foi novamente discutido e os Estados Unidos e a União Européia deixaram o Canadá com o compromisso de apresentar uma proposta de liberalização agrícola alternativa à Proposta Harbinson até agosto, o que foi cumprido.

Apesar do indício de boa-vontade por parte da União Européia em colaborar com o avanço das negociações, expressa na reforma da sua PAC (Política Agrícola Comum), a proposta euro-americana recém-apresentada deixou muito a desejar. Além de tímida e vaga em muitos pontos, criou mais uma nova categoria de países, como se não bastassem as tantas outras já existentes – a dos "significant net food exporting countries", que teriam tratamento especial, não gozando das mesmas vantagens concedidas aos países pobres e na qual o Brasil estaria incluído.

Diante dessa realidade, o Brasil e outros 20 países em desenvolvimento decidiram fazer frente à proposta euro-americana e empenhar-se no desemperramento das negociações agrícolas no âmbito da Rodada, trazendo um fio de esperança para Reunião Ministerial da OMC em Cancún. Estava formado o G-21, que, por seu turno, encontra resistência no G-6, formado por países protecionistas, que apóiam os Estados Unidos.

Como vemos, são muitos Gs para pouco mundo, todos criados em torno daquele velho ideal – a busca de maior acesso a mercados. Realmente, a história se repete, mudando somente sua cara.

Devemos acreditar, porém, que o recém-criado G-21 não será apenas mais um G no nosso vocabulário, mas sim um G para ser guardado na memória como tendo sido o grupo que conseguiu quebrar a rigidez e a intolerância dos países ricos e trazer novo alento aos países pobres, permitindo a flexibilização do comércio agrícola mundial. E, quem sabe, um dia possamos substituir todos esses Gs por um único, o G-146, formado por todos os membros da OMC. 

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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