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A nova geografia dos acordos comerciais

por Sandra Leis

27 de junho de 2014

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Por Sandra Leis
Sócia do escritório
Dannemann Siemsen


Já faz quase 10 anos, mas ao ver a foto no mural da minha sala, tudo parece muito recente: lá estou eu, fazendo pose, à frente de uma barreira de policiais fortemente armados, assistindo aos protestos contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas).  Terminados os trabalhos do Fórum Empresarial que ocorreu paralelamente à Reunião Ministerial da ALCA em Miami, em 2003, testemunhei, nas ruas,  aquele momento épico. Épico porque, em 2004, todo aquele clima de euforia esmoreceu, até que as negociações foram definitivamente encerradas.

Lembro-me, também, que foram anos intensos, desde que recebemos a minuta confidencial do capítulo de propriedade intelectual (PI) da ALCA para analisar, palavra por palavra, linha por linha. Seguíamos em frente, tropeçando nos milhares de colchetes que sinalizavam as posições divergentes dos 34 países, participava de inúmeras reuniões e conferências, no Brasil e no exterior.  Definitivamente não podia perder a empreitada audaciosa, já abortada nos anos 80, de se criar uma área de livre comércio das três Américas, formada por países com culturas, histórias e níveis de desenvolvimento tão diferentes. Essa extrema audácia foi um dos motivos do seu fracasso.

Alguns países, porém, não desanimaram e buscaram alternativas para a ALCA.  Os Estados Unidos, por exemplo, negociaram acordos de livre comércio com Chile, Peru, países da América Central, Colômbia, e países fora das Américas.

Mais recentemente, dois grandes acordos tomaram a cena: o TPP (parceria transpacífica) e o TTIP (parceria transatlântica de comércio e investimento).  Pode-se dizer que os Estados Unidos resolveram atirar para os dois lados, ou melhor, oceanos.  No TPP, Estados Unidos se unem a Austrália, Brunei, Malásia, Nova Zelândia, Japão,  Cingapura, Vietnam, México, Canadá, Peru e Chile; no TTIP, somente Estados Unidos e União Europeia.

Apesar dessa nova geografia, a história se repete, pois esses dois acordos lembram muito  a estrutura do Acordo da ALCA.  Todos contêm um capítulo sobre PI, abrangendo marcas, patentes, direitos de autor, desenhos industriais, indicações geográficas, variedade de plantas, proteção de dados de testes, entre outros. 
 

Embora confidencial, o capítulo de PI no TPP “vazou”. Nele há centenas de colchetes, assim como havia no Acordo da ALCA.  Países divergindo por uma vírgula, uma simples palavra, que pode mudar tudo, até mesmo aprisioná-los a compromissos indesejáveis.  Não poderia ser diferente.  Como a ALCA, o TPP congrega países de culturas, estágios de desenvolvimento e sistemas jurídicos distintos, o que acarreta divergências inevitáveis, mas não intransponíveis.  Para auferir benefícios no fluxo comercial, alguns países certamente cederão na área de PI, assim como aconteceu nos acordos bilaterais citados.

Um exemplo é o artigo do TPP que obriga os países membros a aderirem a dez acordos internacionais, incluindo acordos que muitos países relutam em aceitar, como o Tratado de Cingapura, na área de marcas, e o Tratado da OMPI sobre Direitos de Autor.  A mesma divergência existia na ALCA, onde alguns países defendiam um texto mais flexível do tipo “se esforçarão para aderir” em vez de “se obrigam a aderir”.

Observo, contudo, algumas novidades no TPP com relação à ALCA. Para atender à modernidade, o TPP prevê um capítulo inteiramente dedicado à responsabilidade dos provedores de internet, tema tão debatido atualmente e também presente no nosso Marco Civil da Internet. 

Quanto ao TTIP, as negociações entre Estados Unidos e União Europeia se iniciaram em meados de 2013 e continuam. O objetivo do acordo é eliminar tarifas e outras restrições ao comércio entre as partes, como acesso a mercado, questões regulatórias, barreiras tarifárias e não-tarifárias. O acordo também engloba uma parte dedicada à PI (patentes, marcas, direitos de autor, desenhos industriais, variedade de plantas, indicações geográficas, proteção de dados de testes, segredos de negócio, etc.).

Mas por que um acordo que trata de comércio e investimento teria uma sessão sobre PI?  A resposta é simples: nenhuma empresa terá interesse em investir em outro país se este não lhe proporcionar um ambiente sadio para negócios, segurança e garantia de proteção dos seus direitos, inclusive direitos de PI.  Não há inovação sem investimento, e a inovação cujos frutos são devidamente protegidos por um sistema eficiente de PI gera mais competitividade, novos investimentos e mais inovação. É um círculo virtuoso. Ainda que não haja consenso quanto à conveniência de se incluir PI num acordo dessa natureza, não se pode negar que comércio, investimento e PI são temas interligados.

Enquanto se expande essa verdadeira teia de acordos bilaterais e plurilaterais, a passos relativamente rápidos, o Acordo Mercosul-União Europeia se arrasta há anos, com mais ou menos fôlego, principalmente devido ao baixo desempenho da economia de alguns de seus membros, o que dificulta a troca de ofertas entre os blocos.  Assim, não seria absurdo imaginar que os Estados Unidos cruzarão o Atlântico antes de nós.
 

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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