por Ana Lucia de Sousa Borda
06 de fevereiro de 2020
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O uso de produtos provenientes de Cannabis para fins recreativos e medicinais já é uma realidade em diversos países. No Brasil, as discussões, acaloradas por sinal, giram principalmente em torno de seu uso para fins terapêuticos.
Estão se tornando cada vez mais frequentes, tanto em nosso país como também mundo afora, relatos de melhora significativa de alguns quadros clínicos complexos, que se fazem acompanhar de convulsões, por exemplo, após o uso de produtos de Cannabis, e que até então não apresentavam evolução satisfatória com os tratamentos disponíveis no mercado.
Longe de deixar de ser uma questão controvertida no Brasil, foi dado um primeiro e importante passo no que diz respeito ao uso de Cannabis para fins medicinais por meio da Resolução da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) (RDC nº 327, publicada em 11 de dezembro de 2019).
Tal Resolução entrará em vigor em 10 de março de 2020, ou seja, 90 dias a contar de sua publicação. Sem ter a pretensão de esgotar o tema, este artigo tem por objetivo refletir sobre alguns pontos e destacar outros tantos.
O primeiro deles está relacionado ao fato de que a possibilidade de prescrição de produtos de Cannabis para fins medicinais somente poderá ocorrer após esgotadas todas as possibilidades de tratamentos convencionais já existentes no mercado brasileiro.
No entanto, a resposta a tratamentos convencionais disponíveis vai variar de acordo com a resposta de cada indivíduo. Pacientes portadores de idênticas patologias poderão apresentar reações totalmente distintas, o que deverá ser levado em consideração, para que não sejam criados entraves para o uso de produtos de Cannabis por parte daqueles que poderão encontrar nessa opção de tratamento, se não a sua cura, ao menos um substancial alívio dos seus sintomas.
A RDC nº 327 elenca todos os requisitos necessários para a concessão da Autorização Sanitária, documento essencial para que se possa importar, fabricar ou comercializar produtos de Cannabis no Brasil. Nesta Resolução estão igualmente previstas vedações diversas e, ainda, parâmetros a serem observados.
Dentre as vedações dignas de destaque estão aquelas referentes à publicidade, cuja possibilidade foi totalmente afastada. Nomes comerciais também estão proibidos. Marcas nominativas (somente palavras), marcas figurativas (somente desenhos) e marcas mistas (palavras e desenhos) pertencentes a instituições governamentais, entidades filantrópicas, associações que representem os interesses dos consumidores ou dos profissionais de saúde também não poderão constar das embalagens, rótulos, folhetos, etc. Selos de certificação de qualidade estão igualmente abrangidos, exceto naqueles casos em que tais selos sejam de uso obrigatório em razão de regras específicas.
Particularmente no caso de produtos de Cannabis, a marca de certificação mostra-se adequada para cumprir a sua função de orientar o consumidor quanto ao produto a ser adquirido, em especial no tocante à conformidade com determinados padrões de fabricação, armazenamento, etc. É importante deixar claro que a marca de certificação não constitui obrigatoriamente um indicativo de excelência do produto, mas sim de sua adequação a certos padrões a serem seguidos ao longo do processo de fabricação e comercialização. Tal condição deve ser atestada por entidade que não poderá ter interesse comercial direto e nem mesmo indireto na comercialização do produto, a fim de que fique preservada a necessária isenção do órgão certificador.
Chama a atenção o fato de que a Autorização Sanitária, se concedida, permanecerá válida por um prazo improrrogável de cinco anos, o que dá ensejo a uma dúvida sobre a descontinuidade de comercialização de produtos que se mostraram eficazes e que continuarão a ser necessários para tratamentos em andamento.
Concedida a Autorização Sanitária, o responsável pelo produto terá prazo de 365 dias para iniciar a sua comercialização, sob pena de seu cancelamento. Tal previsão reflete extremo rigor, vez que o prazo de 365 dias contados a partir da data de concessão da Autorização Sanitária poderá não ser suficiente, ao menos em alguns casos.
Mais inquietante ainda é a previsão de cancelamento da Autorização Sanitária por decisão unilateral da Anvisa a qualquer tempo, como resultado de avaliações e verificações in loco. Mesmo partindo do pressuposto de o cancelamento ser justificado em prol da segurança dos usuários dos produtos de Cannabis, espera-se que a adoção de medida tão drástica se dê de forma criteriosa, a fim de evitar prejuízos a terapias em andamento e que vinham ocorrendo até então com significativa melhora do paciente.
A Resolução esclarece de forma inequívoca que a Autorização Sanitária permitirá a importação de insumos farmacêuticos sob a forma de derivado vegetal, sendo vedada a importação da planta propriamente dita ou de partes dela.
O enquadramento dos produtos de Cannabis gera dúvida, na medida em que a Resolução veda o emprego de termos como por exemplo “medicamento” e “remédio” em embalagens, rótulos e folhetos informativos, e também afirma que o produto de Cannabis não é um medicamento. Apesar disso, a norma em questão prevê o cancelamento da Autorização Sanitária para aqueles produtos de Cannabis que não se adequarem à categoria de medicamentos.
Como toda questão nova, a comercialização de produtos de Cannabis continuará a gerar debates, mas a Resolução nº 327 esclarece uma série de pontos – mesmo que não se concorde com todos eles. É, como dito, um primeiro e relevante passo e uma luz no fim do túnel para muitos profissionais de saúde, para portadores de doenças passíveis de tratamento com produtos de Cannabis após esgotadas todas as vias de tratamento disponíveis e, ainda, para os familiares destes.