por Jose Antonio B. L. Faria Correa
01 de julho de 2003
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Completar 40 anos em 2003 significa ter experimentado a travessia de quatro décadas de acentuada significação para o Brasil e para o mundo, cada uma com a sua coloração própria, cada uma com a sua dramaturgia particular.
No Brasil, os anos revoltos da década de 1960, que assistiram ao entrechoque de idéias e aos abalos institucionais que mudaram completamente a face do país; os anos institucionalmente tensos da década de 1970; os anos confusos da década de 1980, em que, de um lado, o país assistiu ao retomo da normalidade democrática e recebeu uma nova Constituição Federal, em 1988, mas, de outro lado, se tomou um laboratório de planos econômicos que explodiu no dealbar da década seguinte, causando perplexidade, revolta e frustração, além de profunda dor e tristeza para aqueles que passaram uma vida inteira reunindo suas economias para a construção de seu futuro; a segunda Abertura dos Portos, no início dos anos 90, expondo o Brasil à competição externa; o período de relativa estabilidade econômica abalada, posteriormente, por sucessivas crises econômicas mundiais que repercutiram no país; as surpreendentes mudanças de rumo político que vivenciamos nesta passagem de século; a explosão dos problemas sociais, tendo como sucedâneo perverso a infiltração da criminalidade nas diferentes esferas da sociedade pelo Brasil afora; a redefinição do papel do Brasil na comunidade internacional.
No mundo, a tensão da guerra fria; os movimentos estudantis que sacudiram Paris em 1968 e rasgaram as instituições; a formação de blocos econômicos; a reviravolta nos costumes; o marasmo econômico de diversos países do mundo industrializado; os conflitos do Oriente Médio que se agudizaram no início dos anos 90, a súbita queda do Muro de Berlim e o desmantelamento do pesado bloco soviético; a consolidação da União Européia, entre tantos episódios marcantes; a revolução informática, com todo o séquito de metamorfoses por ela acarretada em todos os setores, desaguando no primado da Internet e dando lugar à noção de empresa virtual; o trágico 11 de setembro de 2001 e a instalação de renhida luta contra o terrorismo internacional.
A propriedade intelectual não permaneceu imune aos ventos que varreram todas essas quatro décadas finais do século 20. Enfrentou as dificuldades decorrentes de preconceitos contra o sistema de patentes que floresceram ao longo dos anos 60 e atravessaram os anos 70, calcados na visão de organizações internacionais que influenciaram as políticas de países em desenvolvimento, notadamente a UNCTAD, como lembra o professor Beier [1]; as limitações impostas ao licenciamento de direitos por modelos dirigistas que pontuaram a década de 1970 e se espraiaram pelos anos 80; experimentou resistência à aplicação dos mecanismos da Convenção da União de Paris destinados à proteção eficaz contra a apropriação indevida de marcas notoriamente conhecidas; passou por transformações conceituais de envergadura acarretadas pela revolução informática, com questões complexas como a proteção jurídica do software e o direito autoral na multimídia; antes tímida, ganhou os jornais na medida em que adquiriu acento eminentemente econômico, tornando-se "vedete" nas discussões de acordos internacionais e impõe-se, exuberante, à comunidade internacional em um tratado multilateral de um vigor sem precedentes: o Trade Related Aspects of Intellectual Property – TRIPs; serpenteou-se em novas áreas que despontaram pelo final do século 20, como biotecnologia, conhecimentos tradicionais e folclore; passou a protagonizar discussões inflamadas sobre a possibilidade de patenteamento de seres vivos.
A ABPI viu tudo isso e, com o pulso firme dos dirigentes que se sucederam, lutou contra idéias distorcidas que empanaram a propriedade industrial; arrostou as naturais dificuldades de diálogo com um regime de exceção; venceu, com a paciência, a competência e a generosa dedicação de seus representantes, a densa teia de entraves à evolução de um setor da mais absoluta importância para o desenvolvimento de um país.
Nessa longa trajetória, a ABPI viu nascer o INPI; presenciou a patética coreografia das várias leis de propriedade industrial que se sucederam; deixou profunda marca na lei hoje vigente; acompanhou as diversas transformações por que passou o direito de autor; participou ativamente nas discussões que culminaram no reconhecimento do software como obra protegida por direito de autor; viu a promulgação da Revisão de Estocolmo da Convenção da União de Paris; ganhou o respeito de entidades e organismos internacionais, perante os quais as suas opiniões, extraídas das laboriosas resoluções que produz, desfrutam de consideração, de modo especial a AIPPI e a OMPI; realizou um Congresso da AIPPI no Rio de Janeiro, de grande repercussão; institucionalizou um Seminário Nacional anual que, disseminando a propriedade intelectual pelo país, se tornou o principal evento da área, atraindo pessoas não só do Brasil como do exterior; instituiu um almoço mensal, promovendo a reunião de seus associados em torno de palestrante convidado para apresentar e debater tema de interesse; assistiu ao nascimento de uma lei pioneira em matéria de arbitragem, o Código de Defesa do Consumidor, legislação inédita no Brasil; assistiu à promulgação de um novo Código Civil, que, após três décadas de gestação, finalmente despontou no nosso cenário jurídico, trazendo modificações substanciais que se refletem no nosso campo de ação, notadamente no que diz respeito ao tratamento do nome empresarial.
É, para mim, uma grande honra e, também, uma enorme responsabilidade, conduzir esta Associação neste período de tanta ebulição, dando continuidade ao trabalho missionário dos que me antecederam e tiveram de construir esta entidade a partir do nada e ajustando nossa estrutura aos movediços tempos que vivemos.
Esta idade apanha a ABPI em um momento de fértil atividade científica, com a produção de resoluções e trabalhos que vêm efetivamente contribuindo para o avanço do tratamento da propriedade intelectual e participando de eventos nacionais e internacionais em que a sua voz é ouvida com respeito e consideração. A ABPI atinge estes 40 anos com mais de 600 associados e com a maturidade conquistada pelas vitoriosas lutas que empreendeu nos últimos quartéis do século 20 para chegar onde chegou; desembarca na casa dos 40 anos com um nome que se projeta não só no Brasil como também nos fóruns internacionais. A ABPI, no período em que assumi a presidência, vem interagindo com as profundas modificações legislativas e propostas de acordos que, incessantes, demandam um trabalho febril por parte da nossa relato ria. Nesta fase, a ABPI debruçou-se sobre medidas provisórias modificativas da lei de propriedade industrial, uma das quais, quebrando princípio basilar do direito brasileiro, atingia disposições transitórias daquele diploma no que se refere ao patenteamento de produtos químicos e farmacêuticos; opinou sobre os múltiplas implicações das propostas da ALCA no terreno da propriedade intelectual; analisou as várias questões relativas à possibilidade de integração do Acordo de Madri no nosso sistema jurídico; pronunciou-se sobre projetos de lei relacionados com o combate à contrafação de marcas e patentes; propôs alterações nos dispositivos do novo Código Civil respeitantes à disciplina do nome empresarial; envolveu-se ativamente nas dificultosas questões relacionadas com o tratamento dos nomes de domínio; expressou-se a respeito da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico – CIDE; interveio, com resultado imediato, junto à Secretaria da Receita Federal no sentido de afastar o enquadramento dos direitos de propriedade intelectual nas exigências das Instruções Normativas 167 e 190.
Para acompanhar o andamento vivace do mundo atual, imposto pela batuta da Internet, a ABPI reestruturou seu sítio na Internet, dando-lhe configuração apta a atender os seus associados e ganhar projeção; criou um boletim mensal e um boletim eletrônico para a difusão de notícias sobre as atividades da Associação e de interesse para os seus membros; deu seguimento ao árduo e frutuoso trabalho editorial das gestões passadas, valorizando a Revista da ABPI, que se consolidou como o principal repositório de doutrina e jurisprudência na área, sendo lida e respeitada pelos tribunais e pelo governo.
Neste período, a ABPI deu continuidade à organização de seus seminários anuais, tendo realizado os de 2000, 2001 e 2002, respectivamente, em São Paulo, em Vitória e no Rio de Janeiro. A 23ª edição do evento será, novamente, em São Paulo. A presença cada vez mais expressiva de participantes de vários outros países, sobretudo na América Latina, consolidou a vocação de nosso Seminário Nacional a desempenhar o papel de pólo de atração particularmente dos que militam neste campo nos diversos países vizinhos.
A passagem dos 500 anos de descobrimento do Brasil deu-nos o ensejo de organizar e inaugurar, por ocasião do XX Seminário Nacional da Propriedade Intelectual de 2000, em São Paulo, uma Exposição de Inventiva, de caráter itinerante, exibindo as realizações do país nos mais diversos campos e mostrando-as a milhares de estudantes, realizando, assim, um trabalho educacional de base e contribuindo com um dos aspectos fundamentais e, infelizmente, carentes no Brasil, que é a educação.
Muito me alegro, portanto, em poder oferecer uma quota de colaboração para a história desta entidade que muito prezo e confraternizar com nossos associados neste momento de júbilo. Não seria justo, porém, deixar de registrar que, nesta minha passagem pela ABPI, tenho contado com a colaboração de uma diretoria integrada por pessoas de grande envergadura, entre elas vários ex-presidentes, sem cuja orientação e apoio eu não poderia ter concretizado esses projetos, e com uma equipe competente e dedicada, encabeçada por Carmen Lima. A eles todos agradeço pelo sustento que me têm dado.
1. In "Patentschulz – Weltweit Grundlage Technischen Fortschritts und Industrieller EntwickIung", artigo publicado em Ifo-Studien, Zeitschrift für Empirische Wirtschaftsforschung, 1981, pp. 191/208.