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O Fenômeno da Diluição e o Conflito de Marcas

por Jose Antonio B. L. Faria Correa

01 de novembro de 1998

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Um dos critérios que balizam o exame de colidência de marcas é a existência, no ramo de negócio pretendido, de outros sinais morfologicamente eqüidistantes, teoria tradicional no campo do direito de propriedade industrial que vem sendo adotada, sem maiores discussões, pelo INPI e pelos tribunais.

Todavia, quando, na hipótese de pretensão a novo registro, se mede a distância entre o sinal candidato e os que lhe precedem no tempo, faz-se juízo a partir da realidade atual: a marca é ou não registrável à luz da situação fática disposta. Não se emite juízo valorativo quanto à liceidade do registro das diversas marcas que compõem o universo dentro do qual a marca neófita há de transitar. Registradas que se acham essas marcas, sobre sua validade não há que se questionar, seja porque o prazo decadencial se tenha escoado, seja porque juízo dessa natureza pressuporia provocação de legitimado, ainda que, em certas hipóteses, a própria Administração Pública, desde que dentro do prazo, possa suscitar a questão administrativa ou judicialmente.

O propósito deste artigo é discutir as diversas causas conducentes ao convívio de marcas morfologicamente similares, a justificar a aplicação da teoria da distância , e os seus efeitos jurídicos, para se concluir que , dentre essas causas, muitas há que derivam de ato ilícito e que o fenômeno da diluição, embora de grande peso, pode ser nuanceado por outros fatores que, reunidos, permitem que se dê pela configuração de infringência de direitos.

Quando se pesquisa o grau de novidade de um sinal distintivo, para se lhe apurar a registrabilidade frente a marcas precedentes, pouco se atenta para o fato de que, em algum momento, alguém inovou , adotando e apresentando a registro, perante a Administração Pública, sinal original e que esse sinal foi, lenta ou abruptamente, arredado por outros que se sucederam, dimuindo-lhe o espectro de proteção. Esse fenômeno prende-se a diversos fatores:

a) A marca-fonte derivava de palavra, radical ou elemento gráfico nitidamente genérico/descritivo em relação ao segmento ao qual visava a distinguir e o resultado era banal;

b) A marca-fonte derivava de palavra, radical ou elemento gráfico nitidamente genérico/descritivo em relaçào ao segmento, mas seu resultado, como decorrência de operaçào lógica, era criativo;

c) A marca-fonte derivava de palavra, radical ou elemento gráfico nitidamente genérico/descritivo em relação ao segmento, mas, a exemplo do ovo de Colombo, ninguém , na concorrência, havia pensado em fazer de tal palavra ou elemento gráfico uma marca;

d) A marca-fonte, derivando de palavra , radical ou elemento gráfico genérico/descritivo , tendo ou um resultado banal ou um resultado criativo, torna-se respeitada no mercado, adquirindo notoriedade;

e) A marca-fonte era, na sua origem, termo ou elemento gráfico singular, sem qualquer associação lógica com o universo semântico em que inserida, mas , fruto de constantes imitações não reprimidas, vulgariza-se.

Passaremos a uma análise das diversas hipóteses enunciadas acima.

A situação mencionada no item a) compõe a tipologia dos sinais de fraco poder distintivo, no limiar da registrabilidade. Na sua gênese, nada mais fazem do que declarar, direta ou indiretamente, a finalidade ou uma das propriedades imanentes do produto ou serviço. São marcas predestinadas a conviver com outras de estruturação similar. O que as caracteriza é a previsibilidade de que terceiros, de boa fé , também, no futuro, venham fazer uso do radical, do termo ou do desenho nelas inscrito. Obedecem elas ao seguinte esquema lógico:

S + C ou


C + S ou


C + S + C

onde S é o termo ou sinal gráfico com carga semântica ligada ao produto ou serviço e C é o complemento lógico que a ele se agrega para dar forma final à marca.

Na situação descrita no item b), o termo , sinal gráfico ou radical apresenta associação lógica com o produto ou serviço, mas através de uma figura do pensamento, notadamente por sinédoque, metáfora ou catacrese. A ligação lógica, ainda que reconhecível sem a necessidade de esforço intelectual profundo, manifesta -se, portanto, de modo atípico, fora do padrão lingüístico até então existente. Essas marcas obedecem o seguinte esquema estrutural:

> S + C ou


C + > S ou


C + > S + C,

onde > S é o termo com carga semântica ligada ao produto ou serviço, mas originária de outro campo lingüístico e C , o complemento que, a ele agregado, dá a enformação final à marca.

Na hipótese c), tem-se termo , sinal gráfico ou radical cuja associação lógica com o produto ou serviço é perceptível , mas até então ninguém pensara em utilizá-lo, pelo menos, não na apresentação concebida pelo precursor. Essas marcas são de esquema estrutural variável:

CS ou


CS + CS

onde todo o conjunto (semantema e complemento) são uma coisa só.

A hipótese d) é típica das marcas que, consistentes em palavras ou sinais gráficos obviamente relacionados com o produto ou serviço, passam por transformação semântica no decorrer do tempo, como fruto de uso intenso, sendo percebidas pelo público como identificadores de determinada fonte. Essas marcas obedecem ao seguinte esquema:

S ===> S1,

onde S é o fator semântico ligado ao produto/serviço e S1 é o fator semântico resultante da mutação semiológica.

Finalmente, a hipótese e) diz respeito a marcas que, geneticamente, nada tem que ver com o produto ou serviço, mas que, por abuso do próprio titular ou de terceiros não acionados, se degradam semanticamente, obedecendo ao seguinte esquema:

-S ====> S

onde – S significa termo, radical ou sinal gráfico neutro em relação produto e S a involução produzida pelo uso inadequado. Essa hipótese compõe justamente o inverso da situação d), em que o sinal, próprio da experiência lingüística do ramo de negócio, dela se distancia para se particularizar.

No exame da possibilidade de acesso de novas marcas ao grupo de sinais registrados dentro de uma categoria (ou de várias, quando relacionadas), há que pesquisar em que tipologia se enquadram tanto a amrca pretendida quanto as demais que com ela acusam semelhança. Esse exame é necessário para que se não incorra no erro de classificar o termo ou sinal gráfico como de fraco poder distintivo ou desgastado em relação ao segmento de mercado objetivado. Ao meter um sinal dentro do molde incorreto, o examinador pode, artificialmente, diminuir o poder distintivo das marcas precedentes e criar uma diluição ilícita.

A mesma linha de raciocínio aplica-se à verificação, pelo Poder Judiciário, de pretensões de abstenção deduzidas por titulares de marcas com as diferentes enformações alinhadas neste trabalho contra sinais semelhantes. Há que, rigorosamente, pesquisar, aqui também, em que classe de marca se ajusta o sinal pertencente ao autor.

Estas considerações apontam, igualmente, para a ilação de que o direito de exclusividade que deriva do registro d eum sinal distintivo apresenta um certo nível de motilidade, pois não há como determinar, a priori, o seu campo exato de abrangência, que pode variar em função das circunstâncias do caso concreto e sobretudo do grupamento em que se encontram tanto o sinal que se opõe a terceiros e o sinal que se pretende infringente. Isso, porém, não constitui qualquer novidade em relação a outros campos do direito, pois, a exemplo do exposto na teoria platônica das idéias , os direitos compõem tipos, moldes abstratos , cuja manifestação somente se dá quando, ocorrendo pretenso ingresso no espaço jurídico por eles delineado, se realizam, se positivam no âmbito da res in judicio deducta. É o Judiciário, portanto, que mostrará a geometria desses direitos, como eles se comportam em relação às circunstâncias que o autor alega violá- los. Especificamente no campo das marcas, quando a lide diz respeito a conflito com sinal novo, seja em estado dinâmico (em uso pretensamente ilícito), seja em potência (dentro da cápsula de registro que se pretende ilegal), a realização do tipo deve levar em conta as considerações que apontamos supra.

Quid juris se , fruto de avaliação inadequada do material semântico que compõe as marcas em determinada classe de produtos ou serviços, o INPI promove novos registros que, não contestados nos prazos legais, convalescem e se tornam realidade jurídica? Cabe indagar, porém, se , apesar da convalescência de registros para marcas similares que, teoricamente, teriam encurtado o espaço dentro do qual se move o direito de titulares mais antigos, esses registros precedentes conservam , de alguma forma, sua eficácia plena, preservando a marca o seu tonus primevo, sua capacidade originária de distinguir. A matéria é extremamente complexa, tendo dado margem a inúmeras demandas judiciais. Entendemos que a apreciação de pretensões de abstenção, nesses casos, devem consultar os seguintes aspectos, cumulativamente:

a) O panorama dos semantemas que compõem as marcas controvertidas;

b) A identificação da tipologia dos sinais (vide 5 classificações que propusemos acima);

c) A medição do grau de distância entre as marcas relativamente às demais;

d) Apesar de o conflito entre sinais se relativizar em função da existência de marcas eqüidistantes no mesmo segmento, não se pode perder de vista que cada marca é uma unidade lógica, tendo seu perfil, sua história, de forma que os aspectos a), b) e c) não são, por si só, concludentes;

e) Em função do aspecto d), a possível configuração de má fé: o titular ou usuário do sinal neófito não quer, apenas, ser mais um a compartilhar os traços dos diferentes sinais distintivos do ramo, tendo, ao revés, o propósito específico de imitar a marca que se lhe contrapõe;

f) A notoriedade do sinal que se pretende imitado.

Sem se levar em conta essas premissas, o julgamento do conflito pode conduzir a distorções, e não são poucos os casos em que tanto o Judiciário quanto o INPI deram por procedentes ou improcedentes pretensões absolutamente desarrazoadas. A exemplo do exposto na teoria platônica das idéias (1), os direitos compõem tipos, moldes abstratos, cuja manifestação somente se dá quando, ocorrendo pretenso ingresso no espaço jurídico por eles delineado, se realizam, se positivam no âmbito da res in judicio deducta. É o Judiciário, portanto, que mostrará a geometria desses direitos, como eles se movem em relação às circunstâncias que o autor alega violá-las. Especificamente no campo das marcas, quando a lide diz respeito a conflito com sinal novo, seja em estado dinâmico (=em uso pretensamente ilícito), seja em potência (=em registro que se pretende ilegal), a realização do tipo deve levar em conta as considerações que apontamos supra.

Dentre os aspectos delineados acima, a serem levados em conta como parâmetros de avaliação de conflito, instaurado no âmbito da Administração Pública ou do Judiciário, merece exame específico aquele objeto do item "f", ou seja, a notoriedade conquistada pelo sinal. A notoriedade, no seu sentido mais amplo, é o fenômeno pelo qual a marca , tal qual um balão de gás, se solta, desprendendo-se do ambiente em que originariamente inserida, sendo reconhecida independentemente de seu campo lógico-sensorial primitivo.A notoriedade é correlata à genericidade. A genericidade é o negativo (= imprestabilidade universal para servir como elemento de identificação de um produto ou serviço, por refletir , no plano lógico-sensorial, o próprio produto ou serviço).A notoriedade é o positivo (= idoneidade universal, absoluta para servir de elemento de identificação de um produto ou serviço). Notoriedade é magia e magia é a capacidade de se criar o efeito sem a causa, produzindo do nada. Notória a marca, e a sua utilizaçào impregna de magia qualquer produto, tornando-o vendável. A vendabilidade do produto emerge do poder de distinguir, do poder de atrair o público.

Ora, a distintividade descomunal da marca notória deve ser o fio condutor de qualquer análise de colidência. Não importa que a marca notória tenha emergido de um campo lógico originariamente banal. Importa é a sua evolução no campo cognitivo, a aptidão que tenha adquirido, em função do uso, para dinamizar a venda de um produto. Assim como alguém pode nascer em um meio acanhado e tornar-se dono de um império, a marca notória pode ser, na origem, palavra banal, quase genérica, e crescer a ponto de libertar-se de sua limitação natal. Assim sendo, ainda que a muitos possa parecer um paradoxo, restrição não há a que um sinal não arbitrário possa , pela ginástica do uso, adquirir poder distintivo incomum. Qualquer dos cinco tipos de marca expostos no início deste trabalho pode, em conseqüência, originar sinal notório.

Em resumo, conquanto o exame de colidência, seja na esfera do INPI, seja no âmbito do Judiciário, deva tomar em consideração o quadro atual , a aplicação da teoria da distância não deve desprezar por inteiro os dados históricos, o caráter unitário de cada marca e a eventual ocorrência do fenômeno da notoriedade. A invocação pura e simples da teoria da distância pode deformar a conclusão, deixando ao desabrigo marcas que, malgrado sua aparente semelhança com outras no mesmo segmento de mercado, possuem poder distintivo que, de outra forma, poderia ser corroído.

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Jose Antonio B. L. Faria Correa

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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