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A Proteção ao Solado Vermelho – Uma Decisão Inédita no Direito de Marcas

por Rafaela Borges Walter Carneiro e Patrícia Porto

10 de dezembro de 2024

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A Proteção ao Solado Vermelho – Uma Decisão Inédita no Direito de Marcas

Em uma das decisões mais aguardadas no mundo da Propriedade Intelectual, a 13ª Vara Federal do Rio de Janeiro reconheceu em 18/11 a proteção e distintividade do “Solado Vermelho” dos calçados Louboutin, declarando nulo o ato administrativo do INPI que havia indeferido o pedido de registro nº 901.514.225 para a marca de posição .A decisão judicial sobre a marca do “Solado Vermelho” representa um marco no direito de propriedade intelectual, especialmente no âmbito das marcas. Neste caso, destaca-se a importância da distintividade e do valor de proteger elementos únicos de uma marca.Em 2023, a grife francesa acionou o Judiciário para contestar a decisão do INPI, que indeferiu o seu pedido de registro para a marca de posição com base na suposta ausência de distintividade, conforme o item 5.13.2 do Manual de Marcas daquela autarquia. À época, Louboutin obteve uma liminar suspendendo a decisão do órgão.

Na ocasião, a i. Juíza Federal Marcia Maria Nunes de Barros praticamente se adiantou ao mérito, consignando que:

“…Em exame meramente preliminar e não exauriente, verifico plausibilidade na argumentação da parte autora quanto à possível distintividade do registro n.º 901.514.225:…De fato, é de conhecimento público que a cor vermelha para solados de sapatos femininos de salto alto vem sendo amplamente utilizada pelo famoso estilista Christian Louboutin como uma forma de identidade visual de seus produtos, sendo assim amplamente reconhecida não só pelo público consumidor de artigos de luxo, como também de todos que tenham interesse no mercado de moda e acessórios ou em direito de marcas, direito da moda (fashion law) e o mundo das celebridades – o que também se comprova pelo acervo probatório já trazido aos autos e por buscas na internet….No caso, entretanto, entendo que devem ser privilegiados os motivos trazidos pela demandante para justificar os diversos danos que podem lhe ser causados pela manutenção da decisão indeferitória (…) Do exposto, DEFIRO o pedido de liminar”

Em discussão, está a marca de posição, qual seja: o notório “Solado Vermelho” aplicado em todos os calçados Christian Louboutin, desde 1992, como verdadeira insígnia de singularidade, identidade, exclusividade e requinte.As marcas de posição distinguem produtos pela aplicação de um sinal em uma localização específica, permitindo sua diferenciação no mercado. As marcas de posição foram oficialmente reconhecidas como passíveis de registro no Brasil pela Portaria INPI nº 37/2021. No entanto, a implementação prática desse reconhecimento ainda apresentava lacunas. A Portaria INPI nº 08/2022 (Manual de Marcas) foi editada para aprimorar o regramento e esclarecer pontos específicos, como os critérios de análise, os requisitos técnicos e os procedimentos de exame, o que reforçou a harmonização do Brasil com os padrões internacionais para marcas de posição, permitindo que titulares de direitos de Propriedade Intelectual alinhem suas estratégias de registro no país.A última portaria (Manual de Marcas) reiterou a definição que a marca de posição é caracterizada pela aplicação de um sinal distintivo em uma posição específica de um produto, em que a posição contribui para o reconhecimento do produto como proveniente de determinada origem, sendo que a sua posição não deve ser puramente funcional ou ornamental precisando de caráter distintivo necessariamente. E reforçou, ainda, que o requerente deve demonstrar que o consumidor reconhece o sinal aplicado em determinada posição como indicador de origem e foi além ao determinar que a distintividade pode ser intrínseca (inerente à posição e ao sinal) ou adquirida (decorrente do uso contínuo e massivo no mercado).

Na recentíssima decisão proferida, reconheceu-se que o “Solado Vermelho”, utilizado consistentemente por Christian Louboutin, adquiriu distintividade por meio do uso extensivo e do reconhecimento dos consumidores, o que está em consonância com os princípios do direito marcário que protegem características capazes de distinguir produtos ou serviços no mercado.

Um fenômeno do direito de marcas central que ajudou a embasar a decisão foi o secondary meaning, ou distintividade adquirida. Esse fenômeno ocorre quando um nome, termo ou sinal, a princípio comum e adotado pela sociedade, adquire uma distintividade por ser utilizado continuamente para assinalar um determinado produto ou serviço. Mostrou-se ao longo da ação proposta pela grife francesa que o fenômeno do “Secondary Meaning” pode ser observado com o passar dos anos, em decorrência de uma maior distintividade que vai sendo conferida à marca, devendo ser verificado sob o ponto de vista do público-alvo, que deve perceber o signo em questão como marca de uma determinada empresa, e não como um termo meramente genérico.

Na decisão, o juízo destacou que “a fama e reputação dos sapatos Louboutin fizeram com que os consumidores associassem o solado vermelho ao produto, e não a uma mera cor, caracterizando distintividade adquirida (secondary meaning)”.

O entendimento acima foi embasado em mais de 50 (cinquenta) decisões judiciais e administrativas internacionais que confirmaram a registrabilidade do “Solado Vermelho” e que foram trazidas aos autos do processo.

A análise da corte também se fundamentou em evidências que demonstraram que o “Solado Vermelho” tornou-se sinônimo da marca Louboutin na mente dos consumidores. Pesquisas de mercado foram cruciais para estabelecer essa associação.

Nesse sentido, os resultados da pesquisa de mercado tiveram sucesso ao demonstrar que (i) existe incontestável capacidade de a marca individualizar e diferenciar a Autora da ação dos concorrentes de mercado e (ii) mesmo o consumidor-alvo (leigo em matéria de Marcas) consegue perceber que o solado vermelho de Pantone específico nos sapatos de salto alto Louboutin configura marca de posição em favor da Autora, uma vez que satisfaz todos os requisitos de validade para tal.

Aliás, diante do conceito de marca de posição retirado do Manual de Marcas (INPI, 2022), 95,4% das consumidoras entrevistadas consideraram a sola vermelha dos sapatos de salto alto da marca Louboutin como uma marca de posição.

Hoje, já vemos algumas decisões importantes sobre a aplicação da teoria do “secondary meaning” no Brasil, valendo citar o seguinte acórdão do TRF/2:

PROPRIEDADE INDUSTRIAL. EMBARGOS INFRINGENTES EM APELAÇÃO CÍVEL. NULIDADE MARCA. POSSIBILIDADE DE CONFUSÃO. SECONDARY MEANING. TEORIA DA DILUIÇÃO.I – Apesar dos termos registrados pela autora (“CHINA” e “IN BOX”) serem de origem comum e evocativos do produto (“comida chinesa em caixa”), não se pode olvidar que, atualmente, junto ao público consumidor, os signos em comento, utilizados de forma conjunta, estão diretamente associados ao serviço de comida chinesa servida em caixa, oferecido primeiramente pela autora, o que traduz a ocorrência do fenômeno do secondary meaning (Teoria do Significado Secundário). II – Através da prática de adotar o termo IN BOX em seu registro (ASIA IN BOX), procurou a parte ré se beneficiar da fama alcançada pela empresa autora, que atua há anos no mercado de alimentação, tentando, de certo modo, associar seus produtos àqueles oferecidos pela CHINA IN BOX. III – Ao se permitir que a marca da autora (“CHINA IN BOX”) conviva com a marca da ré (“ASIA IN BOX”), se utilizando do conceito criado pela autora de “comida chinesa em caixa”, tal permissão acaba gerando redução da distintividade do signo copiado. IV- A proximidade dos signos “CHINA IN BOX” e “ASIA IN BOX” pode ensejar confusão mercadológica, eis que o consumidor pode imaginar que a marca “ASIA IN BOX” seja uma ramificação da “CHINA IN BOX”, com o propósito de oferecer itens diferenciados de alimentação, levando o consumidor a crer que está adquirindo aquele produto/serviço já conhecido. V – Embargos infringentes providos.(TRF-2 – EIAC: 05236186420084025101 RJ 0523618-64.2008.4.02.5101, Relator: MARCELO PEREIRA DA SILVA, Data de Julgamento: 24/10/2013, 1ª SEÇÃO ESPECIALIZADA, Data de Publicação: 30/10/2013)

O próprio STJ já salientou tais características peculiares na exemplificação do que seria um elemento gráfico-visual dotado de notoriedade e distintividade, e, portanto, passível de proteção como marca. Senão, vejamos as razões do voto proferido pela Ministra Nancy Andrighi no REsp nº 1.677.787/SC:
“(…) Muito embora os principais signos diferenciadores utilizados para identificação de produtos e serviços sejam o nome empresarial e a marca, é sabido que sua colocação no mercado pode também advir de uma identidade que lhes é intrínseca, composta de elementos gráfico-visuais desenvolvidos justamente com o propósito de distingui-los de seus concorrentes. Como exemplos notórios, pode-se citar a garrafa da Coca Cola, o chocolate Toblerone e o solado vermelho dos sapatos Louboutin. Assim, é usual que a identificação de determinados produtos pelo consumidor seja resultado de sua percepção visual, o que relega a marca correlata a um patamar com potencial diferenciador secundário.”(STJ. REsp nº 1.677.787/SC. Terceira Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. Julgado em: 26/09/2017)
A doutrina também explica que:
“O legislador não cuida, sem embargo, do fenômeno da aquisição de distinguibilidade em decorrência do uso. O conceito não é, ao contrário do que muitos imaginam, peculiaridade do Direito americano, que cunhou o termo secondary meaning. Ainda que a Lei específica não o preveja como figura legal, ele tem status jurídico em virtude do art. 6 quinquies C-I da Convenção da União de Paris, que integra o sistema jurídico brasileiro e, portanto, os órgãos administrativos e judiciários têm o poder-dever de levá-lo em conta ao apreciarem a possibilidade de registro”.(IDS – Comentários à Lei de Propriedade Industrial, 3ª Edição, Editora Renovar, 2013, P. 239)
Um aspecto central da decisão foi o foco em marcas não tradicionais. O julgamento reafirmou que cores, quando aplicadas de maneira específica e consistente, podem servir como marcas, desde que atendam aos requisitos de distintividade: “Fica então claro que, para o público consumidor brasileiro, essa cor no solado de sapatos femininos de salto alto representa uma marca distintiva – ainda que essa percepção tenha sido adquirida em razão da fama do produto no mercado da moda”.A decisão também equilibrou cuidadosamente a proteção marcária com os princípios do direito da concorrência e foi além ao estender a proteção a todos os “Solados Vermelhos” e não só àqueles apostos em saltos altos:
“(…) embora a marca em questão tenha se tornado conhecida para sapatos femininos de salto alto, é natural que a autora também a utilize para produtos similares dentro do segmento calçadista; tanto assim que o website que comercializa produtos Louboutin, https://eu.christianlouboutin.com, utiliza o solado vermelho também em calçados femininos de salto baixo, ou sem salto algum, e até mesmo em botas e calçados masculinos. Ressalto que a marca de posição protege osinal (solado vermelho), sendo que a imagem de sua representação em um sapato de salto alto feminino significa uma indicação de uma das possibilidades de aplicação do sinal, mas não que seja exclusivo para esse tipo de calçado”.
O julgamento reforça a proteção de elementos que formam parte integrante da identidade de uma marca. Para titulares de direitos de Propriedade Intelectual, isso serve como precedente para resguardar aspectos únicos de seus produtos, aprimorando o posicionamento no mercado e a confiança dos consumidores.Além disso, o caso Louboutin contribui para a jurisprudência global sobre marcas de cor e de posição, promovendo harmonização e previsibilidade no direito marcário.A decisão é inédita e pioneira ao reconhecer a distintividade da marca de posição Louboutin no Brasil, garantindo a exclusividade do uso do “Solado Vermelho”. Além de preservar os direitos da grife, a decisão reforça que elementos estéticos podem ser registrados como marca em contextos específicos, trazendo segurança à indústria da moda ao proteger o uso não convencional de cores como identificadores de origem, desde que comprovado o “secondary meaning”.

A decisão é recorrível e necessariamente revista pelo TRF2, por força do art. 496 do Código de Processo Civil.

Rafaela Borges Carneiro é sócia do Dannemann Siemsen.Patricia da Rocha Porto é coordenadora acadêmica do Instituto Dannemann Siemsen.

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Rafaela Borges Walter Carneiro

Sócia, Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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Patrícia Porto

Coordenadora Academica

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