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A Propriedade Intelectual na Era da Informática

por Jose Antonio B. L. Faria Correa

26 de setembro de 2003

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Em seus momentos derradeiros, enquanto, na prisão, esperava o efeito da cicuta em seu organismo, Sócrates fazia, diante de seus discípulos, reflexões que originaram algumas das mais belas páginas da literatura clássica. Dizia, pela boca de Platão, no Diálogo "Phaidon", que o fim último do filósofo é a morte. Tudo que ele faz tende ao "Thanatos", forma de libertação dos sentidos físicos que impedem o homem de atingir sensações maiores e perceber a verdade.

As considerações do filósofo grego traduzem o "pathos" humano: o homem caminha pela história angustiado pelas suas limitações. E é por isso que, já na condição de "homus erectus", se converteu em "homus faber" e começou a criar. Como a audição humana está muito aquém da capacidade auditiva de um cão, que atinge cerca de 40.000 Herz de freqüência, o homem teve de criar o sonar. Uma vez que a voz humana se apaga em questão de poucos metros, volatilizando-se no ar e no tempo, o homem teve de criar o microfone, o telefone, o gravador e uma gama de outros instrumentos que lhe compensassem a deficiência. Sem poder voar como os pássaros, sem poder cruzar os mares como os peixes, teve de inventar o avião e o navio. E na medida em que um ser humano normal não conseguiria fazer operações matemáticas complexas, de inúmeros dígitos, teve de criar o computador.

A capacidade de superar-se é uma necessidade íntima do homem e um dos fatores que comandam a criação, móvel da evolução humana. E o homem vai sentindo necessidades na medida do seu "Entfaltung", o seu desdobramento como ser histórico, a descoberta de suas potencialidades, dentro da ordem hegeliana. De ser criado, passou a criador. No livro do Gênese, Deus anunciava a separação da luz e das trevas, no tonitruante "fiat lux" e concluía os seus 7 dias de obras dando nascimento a um ser que Lhe era semelhante: o homem. Em resposta, os gregos criaram deuses antropomórficos. Mais de dois mil e quinhentos anos depois, o século XX engendrou um ser semelhante ao homem: o computador, receptáculo de todas as ambições e frustrações humanas.

A informática materializa o desejo onírico do efeito sem causa aparente: pensa-se, aciona-se um aparelho e tem-se o resultado. É a eliminação etérea dos procedimentos. É isso que o homem quer, pois com isso se liberta. Há aí, imanente, a noção do "Thanatos", a idéia de morte e libertação. Há aí, imanente, a noção da velocidade, da ruptura das dimensões tempo e espaço. É um lugar-comum afirmar-se que a informática é a grande revolução da história. Não há quem disso não saiba. Alvin Toffler, em seu primeiro "best-seller",já preconizava as transformações do mundo em decorrência do avanço tecnológico. Talvez poucos se apercebam, todavia, da magnitude dessa transformação sobre a vida social, sobre as relações intersubjetivas e, em uma palavra, sobre a noção de alteridade. O homem deixou de ser o que sempre foi, durante milênios e milênios, após o advento da informática.

É razoável pensar que a primeira grande cirurgia operada pela informática se deu no campo dos atos jurídicos e, notadamente, dos contratos. O contrato é o ponto de intersecção entre os homens. É a instituição que preside a vida social. Sem ela, o contacto humano seria infactível: cada um em sua caverna, dela saindo apenas para o embate físico, a "guerra de todos contra todos" do Leviathan de Hobbes. Contratar significa, etimologicamente, "contrair". É uma "contração" do comportamento humano. Chegou um momento em que o ser humano, à mercê das forças da natureza, em um ambiente hostil, concluiu que teria de associar-se, que somente assim poderia prover suas necessidades e combater seus inimigos. Passou , então, a "contrair" as suas garras, os seus músculos e "contratar". O contrato é, ontologicamente, uma limitação de conduta, um denominador comum que permite a satisfação de necessidades mediante aquilo que, em troca de outra coisa, alguém pode suprir.

O contrato passou por inúmeras fases históricas e atingiu um alto grau de desenvolvimento com os romanos. A dificuldade de abstração do direito romano impunha a realização concreta de certos gestos, exigindo, como da substância do ato jurídico, a repetição de determinadas fórmulas. No Brasil, a herança lusa imprimiu aos atos jurídicos, notadamente os contratos, um caráter severo, que, com o tempo, se degenerou, dando nascimento a práticas burocráticas esmagadoras. Em uma palavra: o país tornou-se terreno fértil para o culto do papel, ferramenta de dominação e desestímulo à capacidade de criação.

Ora, o avanço tecnológico no campo da informática trouxe o postulado da velocidade e simplicidade nas relações. Contrata-se, hoje, por fac-símile. Por cartão magnético. Por satélite. Praticam-se atos jurídicos de computador para computador, a distância de milhares de quilômetros. A sociedade despiu-se e despediu-se do papel, da assinatura, do testemunho, da certificação notarial, da legalização consular, da tradução. Só quem levou muito tempo para ver que a sociedade está nua, como o rei de Christian Andersen, sem a sua roupagem de papel, foi o direito positivo, resistente, até certa medida, ao que se passa em volta, preso às imagens de Daumier. Não que as formalidades clássicas do Direito devam ser eliminadas. A sua "função" é que tem de ser redimensionada – e vem sendo, ainda que lentamente – sob pena de não se romperem as amarras entre as duas sociedades, a nova e a velha; sob pena de fincarmos estacas nos séculos que se passaram; não estacas culturais – pois essas devem permanecer – mas estacas funcionais.

A sociedade se eletronizou, se magnetizou, desnudou-se do fardo do papirus, se "despapelizou". Essa iconoclastia é mais um passo na direção da idéia socrática: é a marca da "Thanatos", que eteriza o homem nas suas relações, deixando-o mais leve, para que possa pensar sem ter de vetorizar a sua mente para coisas simplesmente instrumentais. As coisas instrumentais são feitas pela informática. Quando não se tem de pensar NA casa, tem-se tempo de pensar A casa.

O segundo grande choque da informática diz respeito à capacidade de acesso à intimidade do cidadão e o controle de suas atividades. A informática permeia e pervade o mundo com desenvoltura, serpenteando-se pelo espaço em que se agita o homem. Penetra na intimidade humana de forma jamais concebida, obtendo, processando e transmitindo dados sobre o homem que, assim, se torna vulnerável. Em poucos minutos, várias empresas prestadoras de serviços conhecem nossos hábitos, gostos, traçam nosso perfil. As propostas de adesão a cartões de crédito comumente levam em conta, como critérios de seleção, expressamente o tipo de produto e o nível de restaurantes que o destinatário freqüenta. Como as empresas prestadoras desses serviços chegam a essas conclusões? Como se controlam os hábitos das pessoas? Pela informática, e pela informática os nomes, endereços e vários outros dados pessoais viajam de "mailing list" em "mailing list" pelo mundo. Disso não se tira que a inclusão de alguém em "mailing lists" seja nefasta. Tira-se, apenas, que o emprego dos recursos da informática, pelo seu enorme poder de penetração, não pode perder de vista a ética.

Aliás, a informática é axiologicamente neutra, e tão neutra quanto tantas outras criações do espírito humano, como o avião, que, a um tempo, serve ao transporte de passageiros e à guerra. Assim, o temor de que se empreguem recursos da informática como meio de dominação, nos moldes do "Big Brother" de George Orwell, em nada desqualifica o avanço tecnológico nessa área: apenas aponta para a necessidade de crescimento ético e espiritual da humanidade.

Redesenhando a relação dos homens, a informática atingiu, também, os escaninhos mais sombrios da sociedade, penetrando no mundo do crime. A imprensa mundial deu amplo destaque aos "crackers", delinqüentes de alto quociente de inteligência e baixo padrão moral. O computador tem servido não apenas como meio para a prática de crimes tipificados nos diversos países, como, também, deu origem a delitos de coloração própria. Os países devem municiar-se de instrumentos hábeis a coibir e punir, efetivamente, os atos delituosos praticados com o uso do computador.

A prática de delitos como a danificação dolosa de um sistema informático pelo que se convencionou chamar "virus" ou o acesso a informações sigilosas de uma instituição governamental traduz um comportamento cuja última conseqüência é ilustrada na "Laranja Mecânica", película clássica de Stanley Kubrick. É o homem sem preocupações morais, sem respeito pelo próximo. Para ele, o que vale é o sabor da experiência, a audácia de descobrir e desmontar um sistema, por vezes com a simples sensação de poder: o poder de penetrar naquilo que é dos outros. Os delinqüentes do computador são vândalos com alto quociente de inteligência e a mesma textura moral. Essas noções não são novas, apenas ganharam um cromatismo particular com os recursos de hoje. Finalmente, a estas divagações a respeito do significado da informática na sociedade, não poderia faltar uma referência à mitologia que se acastela em torno do computador. Na imagística do homem comum, o computador figura, não raro, como um elemento nocivo, penetrante, que o impede de pensar e o expõe, ainda, ao risco de desemprego. Essa mitologia faz parte da mágica infantil que é a idéia da perda. Mas, não: a informática, longe de aprisionar o homem e torná-lo rude, primitivo, arranca-o do quotidiano árido e fornece-lhe tempo suficiente para dedicar-se ao espírito.

E o que nos reserva o futuro? Como bem analisa Alvin Tofler em seu "Choque do Futuro", a humanidade caminhou muito mais a partir da segunda metade do século XX do que em milênios. A capacidade do homem de superar-se tecnologicamente anda em marcha embriagada. Mal se absorve uma realização revolucionária, e alguém nos apresenta outra, muito mais ambiciosa. As inovações no campo da informática são incessantes e vão redesenhando o mundo em ritmo eufórico. Surpreendemo-nos ao olhar como vivíamos e trabalhávamos há dez anos. Nossa antiga realidade assemelha-se, agora, a uma pré-história. E o que são dez anos na noite do tempo?

O andamento "presto" em que avança o homem aponta para uma metamorfose radical do planeta em algumas décadas. Examinando-se a fundo essa transformação, pode-se concluir que o seu ponto axial seja epistemológico. Talvez, um dia, pela mão da informática, se cumpra o comando do oráculo de Delphi: o "gnothi se authon", o "conheça-te a ti mesmo". A informática está rasgando muitos dos mistérios físicos do homem: a criatura desvendando o criador. A conseqüência desse fenômeno sobre as relações intersubjetivas é inquietante: a vulnerabilidade humana, que deve ser contida pelas leis e pelo crescimento espiritual do homem. É que, infelizmente, se o homem evoluiu de forma assombrosa em sua trajetória histórica, no plano intelectual, tecnológico, continua, espiritualmente, a mesma fera que seus ancestrais. As guerras do Golfo Pérsico, a luta fratricida da antiga Iugoslávia e os movimentos nacionalistas da Europa Ocidental são exemplos antológicos.

E como será o mundo jurídico? Marcas e patentes serão depositadas diretamente por computador. O dinheiro, as apólices de seguro, os certificados de registro de marca, as cartas-patentes, as escrituras de compra e venda de imóveis poderão desaparecer, sendo substituídos por documentos arquivados em computadores pessoais. Poderá haver um arquivo governamental geral, destinado à recuperação de documentos relativos às diferentes áreas. As demandas judiciais serão remetidas ao Poder Judiciário diretamente, por computador. Robôs cuidarão da segurança pública, inclusive do trânsito, transmitindo dados "on-line" sobre os delitos. As multas serão recebidas, igualmente, por comunicações "on-line" e pagas da mesma forma. Os depoimentos serão tomados por aparelho que transmitirá a imagem do depoente, que terá acesso, por sua vez, à imagem do juiz e dos demais participantes do feito.

A prisão será substituída pela absoluta impossibilidade de comunicação eletrônica com a sociedade.

O homem entrará em quadros e participará ativamente das cenas neles retratadas, como em um clássico episódio do seriado Batman. Perder-se-á na zona cinzenta entre a realidade objetiva e a realidade virtual. Sua imaginação disporá de instrumentos realizadores.

E como o homem se protegerá do poder tentacular da informática? O que fará quando, em uma evolução última, o computador puder ser comandado pelo próprio pensamento? As leis terão de punir severamente o uso indiscriminado de dados sobre o cidadão, garantindo-lhe a intimidade. A tecnologia terá de tornar disponível aos cidadãos mecanismos eletrônicos de isolamento, que os tornem invulneráveis ou menos vulneráveis.

A sociedade só poderá conviver ou, antes, sobreviver à evolução avassaladora da informática na medida em que se educar: a revolução tecnológica não pode prescindir de um acompanhamento moral.

A sociedade terá de aparelhar-se, igualmente, com políticas sociais eficientes, para fazer face à marginalidade criada pelo mundo eletrônico: o desemprego, o desajuste, a revolta sem causa aparente. A cena de jovens embriagados vagando pelas ruas e praticando delitos, ora como forma de vida, ora como maneira doentia de diversão, não é simples projeção ficcional. 

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Jose Antonio B. L. Faria Correa

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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