Há menos de um ano, usavam-se termos gastronômicos para definir o rumo que tomavam as negociações da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Em contraposição à intenção de se elaborar um tratado ambicioso, compreendendo quase todos os setores de atividade, não só ligados ao comércio mas também assuntos como propriedade intelectual, investimentos e serviços, o Brasil defendia uma "Alca light", com menos "calorias", ou seja, menos abrangente.
Depois surgiu a "Alca à la carte", segundo a qual cada país poderia escolher os pontos que desejaria negociar.
O cardápio porém não agradava a todos e continuaram as divergências, predominantemente entre os três grandes blocos (Mercosul, países do Caribe e países do Nafta) até novembro do ano passado, quando esboçou-se uma nova estrutura para o Acordo, decorrente da Reunião Ministerial de Miami.
Foi aí que a culinária deu lugar à ecologia, tema tão em moda atualmente quanto a própria "liberalização comercial", fazendo com que a Alca deixasse de ser comparada com alimentos e bebidas dietéticas e assumisse um tom mais romântico, relacionando-se com flores.
Conforme previsto na Declaração de Miami, as negociações da Alca deverão se desenrolar em dois níveis: no primeiro, se estabelecerá um conjunto comum e mínimo de direitos e obrigações; em um segundo nível, se discutirão benefícios adicionais de forma bilateral ou plurilateral entre os países. Assim sendo, com muita propriedade e, porque não dizer, senso poético, Marcos Jank fala da possibilidade de se "criar um acordo no formato girassol, com um núcleo comum pesado e algumas pétalas bi ou plurilaterais à volta. Mas há também forte risco de que o processo produza apenas uma margarida definhante, com núcleo comum pequeno e inexpressivo". E, entre margaridas e girassóis, o Embaixador Adhemar Bahadian declara, a respeito das reuniões em Puebla, que não "estamos num mar de rosas, mas não há espírito de revisar o que foi acordado politicamente".
É verdade. Nem tudo são flores. Cite-se como exemplo o capítulo de propriedade intelectual do texto da Alca. Negociadores e setores da sociedade civil divergem até mesmo quanto à conveniência de se ter um capítulo de propriedade intelectual na Alca e, no caso de haver, se esse capítulo terá como base o Acordo Trips, da OMC, ou disposições que vão além de Trips, o chamado "Trips plus". As divergências continuam nas diversas matérias que compõem o capítulo de propriedade intelectual: regime de exaustão de direitos, proteção das informações não-divulgadas, prazo de proteção da obra protegida por direitos autorais, matérias patenteáveis, licenças obrigatórias, obrigatoriedade de adesão a certos acordos internacionais, etc..
Na III Reunião Temática sobre as negociações de propriedade intelectual no âmbito da Alca, com a participação da sociedade civil, que aconteceu em 28 de janeiro último, na República Dominicana, essas divergências novamente "afloraram", assim como ocorreu no Fórum Empresarial das Américas, em Miami. Em Santo Domingo se pôde perceber, novamente, os diferentes pontos de vista de setores da sociedade e governos, lá representando 15 dos 34 países que compõem a Alca. Por outro lado, ficou demonstrado o grande interesse da sociedade em participar das negociações e expressar suas opiniões.
Por causa destes e tantos outros "espinhos", talvez seja mais apropriado comparar a Alca não com um jardim de rosas, girassóis e margaridas mas, sim, com um variado pomar. Os negociadores certamente terão, até 2005 ou mais além, um grande e belo abacaxi para descascar e, ao final, é bem provável que o texto do Acordo resulte em um tamarindo ou maracujá, com muita casca e caroço e pouca polpa. Caberá a cada um dos 34 países espalhar sementes de flexibilidade política, derrubar cercas protecionistas, ceifar de vez as ervas daninhas que impedem o crescimento econômico e fertilizar o solo com investimentos adequados em infra-estrutura, para que a Alca finalmente dê frutos em um futuro próximo.