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Doha a Quem Doer

por Sandra Leis

05 de setembro de 2003

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Nos próximos dias, cerca de 20 mil delegados invadirão o badalado balneário de Cancún para mais uma Reunião Ministerial da OMC, dando prosseguimento ao que foi acordado no Qatar, em 2001. Engravatados, entre uma tequila e outra, à beira das piscinas de luxuosos hotéis, discutirão os destinos do mundo.

Discutirão como os africanos e outros desafortunados terão acesso a remédios para combater a Aids, a tuberculose e a malária, mas isso não faz muita diferença porque morrerão de fome, de qualquer maneira. E enquanto analisam a Declaração sobre Trips e Saúde Pública, aqui no Brasil o Instituto Nacional do Câncer fecha as suas portas por falta de medicamentos e insumos.

Enquanto se discutirão quotas e tarifas para o suco de laranja, a quota para cada criança brasileira no programa de merenda escolar é de R$ 0,18 (isso mesmo, 18 centavos) por dia. A maioria delas nunca sequer provou daquela saudável bebida, que seria tão importante para seu crescimento, maior rendimento escolar e, consequentemente, a sua formação como verdadeiros cidadãos: fortes, saudáveis, instruídos e prontos para o mercado de trabalho. Alguém sabe o que dá para comprar com R$ 0,18?

Enquanto lá, em Cancún, se analisam dezenas de acordos multilaterais sobre meio ambiente e seus reflexos comerciais, temas importantes como a produção e comercialização de aerossóis e seus efeitos sobre a camada de ozônio ou a comercialização e transporte de resíduos tóxicos, choram aqui os ambientalistas, tal qual carpideiras, diante do corte de 75% do orçamento do Estado do Rio de Janeiro para a área ambiental, assistindo, com pesar, a morte lenta da Baía de Guanabara.

Enquanto o Itamaraty se debruçava sobre temas agrícolas de alta complexidade, subsídios às exportações, medidas de apoio interno e redução de barreiras tarifárias e não-tarifárias, preparando-se para a Reunião Ministerial de Cancún, nossos agricultores invadiam terrenos e prédios em São Paulo, lá vivendo com suas famílias em condições sub-humanas.

Espera-se que os delegados de Cancún cheguem a um consenso quanto a um registro multilateral de indicações geográficas para vinhos e destilados e uma possível extensão da proteção conferida no Acordo Trips para outros produtos tais como queijos, chocolates e chás.

Se isso acontecer, os delegados da França, Bulgária, Suíça e Índia deixarão Cancún bastante satisfeitos, enquanto nós, aqui, teremos que continuar batalhando muito para ver nossa tradicional "cachaça" devidamente reconhecida e protegida lá fora e teremos ainda um longo caminho a percorrer para que os nossos deliciosos vinhos do Vale dos Vinhedos tenham a proteção que merecem.

O mundo está realmente cheio de contradições e divergências. Mas é assim mesmo. Como dizia Cazuza, faz parte do show. Tem sido grande o esforço dos diplomatas para encontrar soluções e consenso para estes e tantos outros temas que fazem parte do Mandato de Doha. Afinal são 146 países a defender seus interesses e emitir suas opiniões. Alguns mais reticentes, outros nem tanto.

E aqui cabe um parêntesis para ressaltar o excelente trabalho da diplomacia brasileira, procurando ceder, quando necessário, e ser firme, sempre que possível, na tentativa de preservar nossos interesses exportadores, nossas ambições na área agrícola e a vulnerabilidade da nossa balança de pagamentos.

Veja-se, por exemplo, o louvável papel dos nossos negociadores na elaboração de uma proposta conciliadora, em nome do Mercosul, tentando desemperrar as negociações da Alca (a chamada "proposta dos três trilhos"). Que Deus os abençoe em Cancún e que possam trazer de lá boas e animadoras notícias.

Enquanto isso, teremos que ficar aqui, não simplesmente aguardando respostas aos 21 pontos lançados em Doha e muito menos resultados imediatos e concretos, já que as discussões continuarão. Ao contrário, deveremos ficar aqui, atentos, procurando fazer nosso "dever de casa", pois Cancún só nos trará frutos se os nossos dirigentes souberem, simultaneamente, tratar de maneira adequada nossos problemas internos, solucionar impasses monetários e cambiais e traçar metas e políticas de desenvolvimento. 

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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