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Sanções premiais e indução de comportamento

por Marcelo Mazzola

22 de junho de 2022

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Em qualquer sociedade organizada, normas são fundamentais para viabilizar o convívio em harmonia.[1] Sem pautas de conduta definidas, prevaleceriam a desordem e a insegurança.

De um modo geral, cabe ao Estado fiscalizar o cumprimento das normas. E uma de suas ferramentas é a sanção, considerada instrumento de direcionamento social.

A sanção tanto pode ter uma feição negativa (punir os transgressores) como uma conotação positiva (premiar comportamentos).[2] Ou seja, punir é apenas uma forma de disciplinar, mas não a única.

Em termos simples, a sanção é a consequência negativa (repressiva) ou positiva (premial) prevista pelo ordenamento jurídico para estimular determinado comportamento.[3]

No decorrer do tempo, a lógica premial e o viés promocional ganharam relevância, uma vez que a “técnica punitiva revelou-se muito simplista e inadequada[4].

Nesse contexto, destacam-se as sanções premiais[5], que ajudam a formar um sistema de incentivos voltado à promoção de comportamentos socialmente desejáveis, recompensando condutas virtuosas[6], cujos efeitos se irradiam para o futuro[7].

De fato, é preciso “resgatar a função da ordem jurídica, que é a de aperfeiçoar o convívio social, estimulando comportamentos desejáveis e reprimindo os indesejados”.[8]

Na prática, as sanções premiais propiciam a criação de um círculo retroalimentante de positividade, funcionando como indutores de comportamentos, o que favorece o cumprimento antecipado de metas e obrigações[9].

Basta pensar, por exemplo, na obrigação anual dos contribuintes de pagarem o IPTU, com a possibilidade de se valerem de um desconto percentual, caso o pagamento seja feito antes do vencimento. A sistemática estimula o contribuinte a antecipar o pagamento em troca de um benefício individual (desconto percentual – a sanção premial). Perceba-se que o indivíduo não é obrigado a adotar a conduta indicada, mas, se o fizer, fará jus ao prêmio.

A lógica premial também se verifica nos contratos de aluguel (abono ou bônus de pontualidade). Sobre o tema, um dos autores deste artigo já teve a oportunidade de assinalar em voto exarado no REsp 1.424.814/SP:

A par das medidas diretas que atuam imediatamente no comportamento do indivíduo (proibindo este, materialmente, de violar a norma ou compelindo-o a agir segundo a norma), ganham relevância as medidas indiretas que influenciam psicologicamente o indivíduo a atuar segundo a norma. Assim, o sistema jurídico promocional, para o propósito de impedir um comportamento social indesejado, não se limita a tornar essa conduta mais difícil ou desvantajosa, impondo obstáculos e punições para o descumprimento da norma (técnica do desencorajamento, por meio de sanções negativas). O ordenamento jurídico promocional vai além, vai ao encontro do comportamento social desejado, estimulando a observância da norma, seja por meio da facilitação de seu cumprimento, seja por meio da concessão de benefícios, vantagens e prêmios decorrentes da efetivação da conduta socialmente adequada prevista na norma (técnica do encorajamento, por meio de sanções positivas).[10]

Na área penal, os acordos de colaboração premiada são terreno fértil para as sanções premiais, especialmente no plano do direito material. Com alguma frequência, controvérsias dessa natureza são dirimidas pelo Poder Judiciário.[11]

Ainda na seara penal, vale mencionar a figura do whistleblower[12] – informante do bem – trazida pela Lei nº 13.964/19 (pacote AntiCrime). Em casos de crime contra a administração pública, o informante será recompensado em até 5% do valor recuperado quando as informações por ele disponibilizadas facilitarem a “recuperação de produto de crime” (art. 4º-C, § 3º, da Lei nº 13.608/18).

Na área tributária, cabe mencionar os arts. 138 e 160, parágrafo único, do Código Tributário Nacional.

Em relação ao art. 138, que materializa o instituto da denúncia espontânea, o STJ decidiu que a hipótese ocorre quando o contribuinte, após efetuar a declaração parcial do débito tributário sujeito a lançamento por homologação, acompanhado do respectivo pagamento integral, retifica-a antes de qualquer procedimento da Administração Tributária, noticiando a existência de diferença a maior e efetuando o pagamento concomitantemente. De acordo com o STJ, “a sanção premial contida no instituto da denúncia espontânea exclui as penalidades pecuniárias[13], isto é, as multas decorrentes da impontualidade do contribuinte.

Já no campo do processo civil, muitos dispositivos contemplam benefícios para estimular determinada conduta ou comportamento.

Por exemplo, o art. 90, § 4º, do CPC estabelece que, se o réu reconhecer a procedência do pedido e, simultaneamente, cumprir a obrigação, os honorários serão reduzidos pela metade.

Quanto à ação monitória, se o réu efetuar o pagamento da dívida no prazo legal, incluindo o percentual de 5% (cinco por cento) a título de honorários advocatícios (metade do mínimo legal), ficará eximido das custas processuais (art. 701, caput e § 1º, do CPC).

Sob o prisma da execução, se o executado efetuar o pagamento integral do débito no prazo de 3 (três) dias, o valor dos honorários advocatícios será reduzido pela metade (art. 827, § 1º, do CPC[14]). Já no prazo dos embargos à execução, se o executado reconhecer o crédito do exequente e comprovar o depósito de trinta por cento do valor da execução, acrescido de custas e honorários, poderá parcelar o restante em até seis parcelas mensais, acrescidas de correção monetária e juros de mora de um por cento ao mês, independentemente de concordância do exequente (art. 916 do CPC). A opção pelo parcelamento importa renúncia ao direito de oferecer embargos (art. 916, § 6º).

A lógica premial também pode ser explorada em convenções processuais celebradas antes ou durante o processo (art. 190 do CPC).

Por exemplo, é possível os litigantes acordarem que, se o devedor oferecer algum imóvel idôneo como garantia antes de qualquer ato de constrição, o credor ficará impedido de penhorar um bem específico indicado pelo devedor (arts. 833, I c/c 848, II, do CPC). Na fase de cumprimento de sentença, as partes também poderiam convencionar o afastamento da proibição contida no art. 916, § 7º, do CPC (que veda expressamente o parcelamento nessa seara), se o devedor apresentar – no prazo do art. 523 do CPC, juntamente com o depósito de 30% do débito –, um seguro-garantia do restante da dívida.

Por fim, discute-se atualmente[15] a possibilidade de o próprio juiz estipular prêmios para estimular comportamentos (sanções premiais atípicas), à luz do art. 139, IV, do CPC (“medidas indutivas”).[16]  O tema ainda é novo, mas a iniciativa, ao menos em perspectiva, afigura-se possível, desde que sejam observados alguns requisitos (não afetação de direito alheio, impossibilidade de se transferir externalidades ao Judiciário, necessidade de fundamentação adequada e observância ao princípio da proporcionalidade).[17]

Nesse particular, cabe registrar que o Superior Tribunal de Justiça reconhece a possibilidade de coexistência das sanções premiais com as sanções punitivas[18]. Assim, em uma mesma decisão judicial, o juiz pode tanto fixar uma sanção premial atípica como uma sanção punitiva.

Por exemplo, suponha-se que, em ação de obrigação de fazer (no caso, duas providências distintas), o juiz fixe na decisão dois prazos: 10 (dez) dias para a primeira, sob pena de multa diária de R$ 500,00 (quinhentos reais), e 30 (trinta) dias para a segunda, sob pena de multa diária de R$ 2.000,00 (dois mil reais). Adicionalmente, o juiz pode estabelecer que, se a primeira obrigação for cumprida antes do prazo de 10 (dez) dias, o “saldo” dos dias poderá ser somado ao prazo anteriormente fixado para a segunda obrigação. Ou seja, se a primeira obrigação for cumprida em 5 dias, a parte terá 35 dias para cumprir a segunda obrigação. O juiz ainda poderia prever um escalonamento descrente das astreintes para incrementar ainda mais o comando judicial.

Desse modo, o devedor pode melhor gerenciar suas obrigações, antecipando algo que, para ele, é mais fácil e ganhando prazo adicional para cumprir a obrigação mais “complexa”, o que também beneficia o credor.

Um registro final: quando Rudolf von Ihering, ainda no século XIX, vaticinou que “um dia, os juristas irão ocupar-se do direito premial[19], provavelmente não poderia imaginar os múltiplos reflexos e os desdobramentos do estudo das sanções premiais, que hoje se encontram infiltradas em nosso ordenamento jurídico e podem contribuir para a racionalização da própria prestação jurisdicional.

 

[1] DURKHEIM, Émile. Les règles de la méthode sociologique. Paris: Flammarion, 2010.

[2] BOBBIO, Norberto. Dalla struttura alla funzione – Nuovi studi di teoria del diritto. Milano: Edizioni di Comunità, 1977, p. 87.

[3] BENEVIDES FILHO, Mauricio.  O que é sanção? Revista da Faculdade de Direito, Fortaleza, v. 34, n. 1, p. 355-373, jan./jun. 2013 Disponível em https://repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/11850/1/2013_art_mbenevidesfilho.pdf. Acesso em: 08.06.2022.

[4] MELO FILHO, Álvaro. Introdução ao Direito Premial. Tese submetida como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Ciências Jurídicas. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1975, p. 172-174.

[5] A expressão sanção premial já está positivada na a) lei (ex: capítulo IV da Lei Complementar nº 29/2004, do Município de Mogi das Cruzes/SP); b) doutrina (ex: BENEVIDES FILHO, Mauricio. A sanção premial no direito. Brasília: Brasília Jurídica, 1999; e c) jurisprudência (ex: STF, ADI 1.923/DF, Rel. Min. Ayres Britto, Rel. para acórdão Min. Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 17.12.2015). A expressão também consta da seção “Vocabulário Jurídico”, no site do STF, com a seguinte nota: “Usar para se referir à consequência jurídica positiva pelo cumprimento de uma norma”. Disponível em https://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarTesauro.asp?txtPesquisaLivre=SAN%C3%87%C3%83O%20PREMIAL. Acesso em: 08.06.2022.

[6] “(…) “a sanção não é sempre e necessariamente um castigo. É mera consequência jurídica que se desencadeia (incide) no caso de ser desobedecido o mandamento principal da norma. É um preconceito que precisa ser dissipado – por flagrantemente anticientífico –, a afirmação vulgar infelizmente repetida por alguns juristas, no sentido de que a sanção é castigo. Pode ser, algumas vezes. Não o é muitas vezes”. ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973, p. 38.

[7] SILVA, Antônio Álvares da. Sanção e direito do trabalho. Belo Horizonte: RTM, 2014, p. 16.

[8] CARPENA, Heloisa; ORTENBLAD, Renata. Ganha mais não leva. Por que o vencido nas ações civis públicas não paga honorários sucumbenciais ao Ministério Público? Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 280, jun./2018, p. 347.

[9] CORDOVIL, Leonor Augusta Giovine. A sanção premial no direito econômico. Revista do Centro Acadêmico Afonso Pena – Faculdade de Direito da UFMG, nº 1, 2004, p. 158.

[10] REsp 1.424.814/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 10.10.2016.

[11] O STF já consignou, por exemplo, que fixação de sanções premiais não expressamente previstas na Lei nº 12.850/2013, mas aceitas de modo livre e consciente pelo investigado, “não geram invalidade do acordo”. STF, AgRg no Inquérito nº 4.405/DF, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, Primeira Turma, DJe 05.04.2018.

[12] Sobre o tema, ver GABRIEL, Anderson de Paiva. Whistleblower no Brasil: o informante do bem. Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/juiz-hermes/whistleblower-no-brasil-o-informante-do-bem-20042020. Acesso em: 08.06.2022.

[13] REsp 1.149.022/SP, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 24.06.10.

[14] “(…) em vez de buscar esse adimplemento voluntário pela imposição de uma ameaça, como ocorre com a previsão da multa legal a que alude o art. 523, § 1º, do CPC, o legislador optou por valer-se de um incentivo. É o exemplo do que se convencionou chamar de sanção premial, assim entendida a técnica por meio da qual se busca induzir o cumprimento voluntário de uma prestação mediante incentivo”. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual Civil: execução. v. 5. 7. ed. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 752.

[15] Juízes passam a conceder prêmios para incentivar o cumprimento de decisões. Disponível em https://valor.globo.com/legislacao/noticia/2021/03/11/juizes-passam-a-conceder-premios-para-incentivar-o-cumprimento-de-decisoes.ghtml. Acesso em: 08.06.2022.

[16] Vale destacar que a constitucionalidade do dispositivo está sendo questionada junto ao STF. Na ADI nº 5.941/DF, proposta pelo Partido dos Trabalhadores (PT), não se questiona a possibilidade de adoção de medidas indutivas, mas sim de medidas coercitivas que possam violar direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição Federal, especialmente a apreensão de carteira nacional de habilitação e/ou suspensão do direito de dirigir, a apreensão de passaporte, a proibição de participação em concurso público e a proibição de participação em licitação pública.

[17] MAZZOLA, Marcelo. Sanções premiais no processo civil: previsão legal, estipulação convencional e proposta de sistematização (standards) para sua fixação judicial. São Paulo: JusPodivm, 2022.

[18] “Desse modo, absolutamente possível a coexistência de sanções negativas, consistentes em consequências gravosas e/ou punitivas oriundas do descumprimento da obrigação, com a estipulação de meios aptos a facilitar o adimplemento, ou mesmo de vantagens (sanções positivas) ao contratante que, ao tempo e modo ajustado, cumpri com o seu dever pactuado”. STJ, REsp 1.579.321/SP, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, DJe 21.02.2018.

[19] “Um dia, os juristas irão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade. IHERING, Rudolf von. A luta pelo direito. Trad. João de Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 67.

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Marcelo Mazzola

Socio, Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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