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Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

por Marcelo Mazzola

23 de dezembro de 2024

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Coisa julgada, obiter dictum e boa-fé: Um diálogo indispensável

É senso comum que a boa-fé deve assumir protagonismo no debate processual contemporâneo. Essa percepção decorre tanto da profícua construção doutrinária ligada ao tema quanto de sua atual conformação normativa. Também é inegável a sua interface com diferentes peças do tabuleiro processual. Elementos como a vedação da nulidade de algibeira e a incidência da preclusão lógica são prova disso.

Particularmente no campo das estabilidades, é fundamental que as partes tenham a exata compreensão daquilo que será ou não consolidado, isto é, aquilo que adquirirá ou não imutabilidade dentro e fora da disputa, inclusive para que as condutas processuais sejam pautadas à luz da boa-fé (art. 5º do CPC).

Nesse sentido, no âmbito de cada processo, devem ser identificadas as questões decididas de maneira principal e as respectivas razões de decidir, separando-se desse caldo decisório eventuais comentários feitos de modo lateral (ou, en passant) no decisum. A esses últimos deve ser reconhecida tão-somente a condição de obiter dictum, evitando-se uma ampliação indevida do conteúdo decisório, em ofensa à tutela da boa-fé e da confiança.

Independentemente da controvérsia doutrinária acerca da natureza da coisa julgada (arts. 5º, XXXVI, da CF e 6º da LINDB), essa última costuma ser compreendida como uma qualidade ou uma autoridade que emana de um processo [1]. A partir dessa noção – na expressão de Botelho de Mesquita – decorreriam a sua imutabilidade e a sua indiscutibilidade. Quanto à primeira, “para que uma sentença possa vir a ser mudada por outra, é preciso que o autor, vencido num primeiro processo, inicie outro que tenha por objeto a mesma ação. A consequência da imutabilidade da sentença transitada em julgado consiste exatamente na proibição de propor uma ação idêntica a outra já decidida por sentença revestida de autoridade da coisa julgada”. Por outro lado, “a indiscutibilidade opera de modo diverso. Opera em relação a quaisquer processos, em que a decisão do pedido do autor dependa do julgamento da questão prévia que tenha sido decidida por via principal em processo anterior, entre as mesmas partes. Ao contrário da imutabilidade, a indiscutibilidade pressupõe que sejam distintas as ações que são objeto de cada um dos processos [2]”.

Ainda no ponto, afigura-se relevante identificar os limites objetivos da coisa julgada, isto é, a extensão a ser atingida por essa autoridade ou, em termos simples, a parcela da decisão que estaria, após seu trânsito em julgado, devidamente acobertada pela coisa julgada. O artigo 503 do CPC estabelece que “a decisão que julgar total ou parcialmente o mérito tem força de lei nos limites da questão principal expressamente decidida”. Por sua vez, o art. 504 dispõe que “não fazem coisa julgada os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença” e a “verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença” (incisos I e II).

Não há dúvidas, portanto, de que o que é alcançado pela coisa julgada é o dispositivo de determinada decisão. Sobre o tema, Alexandre Câmara destaca que “a leitura do caput do art. 503 e do art. 504 (…) permite asseverar que apenas o dispositivo da sentença é alcançado pela coisa julgada. É que, como expresso no art. 503, o que faz coisa julgada é a decisão, e, como visto anteriormente, o conteúdo decisório do pronunciamento judicial se encontra em sua parte dispositiva. Assim, afirmar que a decisão faz coisa julgada é o mesmo que afirmar que o dispositivo da decisão alcança a autoridade de coisa julgada. A fundamentação da decisão, por sua vez, não faz coisa julgada. Evidentemente, nada se encontra no texto legal acerca de a coisa julgada alcançar ou não o relatório da sentença. É que, perdoe-se a obviedade, onde coisa nenhuma é julgada não existe nenhuma coisa julgada” [3].

Em âmbito jurisprudencial, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já consignou que: i) “a qualidade de imutabilidade e indiscutibilidade da coisa julgada somente se agrega à parte dispositiva do julgado, não alcançando os motivos e os fundamentos da decisão judicial” [4]ii) conforme dispõe o art. 504, I, do CPC, ‘os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença, não fazem coisa julgada’” [5]; e iii) “é a parte dispositiva da sentença que alcança a autoridade da coisa julgada; a motivação empregada, quando muito, apenas pode ser utilizada para melhor compreender o alcance do provimento obtido. inteligência dos arts. 468 e 469, I, do CPC/1973 e 503, caput, e 504, I, do CPC/2015 [6].

Como se vê, o STJ reconhece que menções feitas lateralmente na decisão – que não são determinantes para a formação do decisum – não podem ser acobertadas pela coisa julgada [7]. Vale apenas lembrar que o CPC/15 passou a prever a possibilidade de que eventual questão prejudicial se torne imutável e indiscutível mesmo sem a propositura de ação declaratória incidental, desde que observados alguns requisitos (art. 503, §1º – a questão prejudicial deve ter sido decidida expressa e incidentemente no processo e, “I – dessa resolução depender o julgamento do mérito; II – a seu respeito tiver havido contraditório prévio e efetivo, não se aplicando no caso de revelia; III – o juízo tiver competência em razão da matéria e da pessoa para resolvê-la como questão principal”). Isso, porém, não se confunde com eventual assertiva feita “de passagem” no contexto decisório.

Toda essa discussão não é meramente teórica, mas essencialmente prática. Um exemplo pode ajudar a ilustrar. Imagine-se que, nos autos de ação indenizatória, a sentença (parte dispositiva) condene o réu ao pagamento de uma quantia ilíquida, tornando imperativa, portanto, a posterior liquidação do julgado. Suponha-se, porém, que – em determinado trecho da decisão (ex: no capítulo da fundamentação) – haja uma menção acerca do aparente excesso de valores pleiteados na petição inicial, e o decisum venha a transitar em julgado.

Nessa hipótese, é evidente que não se pode reconhecer a existência de qualquer estabilidade quanto a esse comentário feito de modo lateral. Sua inserção funcional e topográfica no contexto decisório impede qualquer espécie de vinculação. Afinal, trata-se de menção realizada em sede de hipótese e de conjectura, nada elidindo o fato de a real decisão (imutabilizada) ordenar a liquidação superveniente.

Sobre a figura do obiter dictum, Michele Taruffo assinala que são “todas aquelas afirmações e argumentações que estão contidas na motivação da sentença, mas que, mesmo podendo ser úteis para a compreensão da decisão e dos seus motivos, não constituem parte integrante do fundamento jurídico da decisão[8]. Justamente por serem argumentos laterais (ditos de passagem), não são acobertados pela coisa julgada.

De acordo com o STJ, “o obiter dictum constante do acórdão não produz coisa julgada[9], sendo certo, ainda, que “considerações incluídas na fundamentação que sejam estranhas às postulações das partes e que não tenham correspondência com a parte dispositiva a rigor não são fundamentos, bastando, para a delimitação do sentido do julgado, que sejam compreendidas como obiter dicta” [10].

Compreender essa distinção é importante. Primeiro, porque todo aquele que “participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé” (art. 5º do CPC), e obviamente a percepção equivocada sobre a coisa julgada pode gerar comportamentos indesejados no processo. E segundo, porque a própria decisão judicial deve ser interpretada “em conformidade com o princípio da boa-fé” (art. 489, § 3º, do CPC), o que exige do julgador uma análise cuidadosa daquilo que efetivamente restou decidido e acobertado pela coisa julgada.

Nesse contexto, pode-se afirmar que a cognoscibilidade prévia a respeito das dinâmicas de estabilidade no plano do processo dialoga diretamente com a boa-fé e com a segurança jurídica[11]. Na prática, os elementos convivem em uma espécie de alimentação contínua: só faz sentido pensar em regimes de estabilidades se for para maximizar a tutela da confiança do jurisdicionado. Até porque, não pode o litigante ser surpreendido com alterações interpretativas supervenientes que impactem de forma sorrateira sua esfera jurídica[12].

Se a coisa julgada consolida o respeito à segurança jurídica e “faz com que as partes envolvidas saibam qual conduta devem seguir, resolvendo dúvida pretérita e/ou ditando o comportamento para o futuro” [13], é fundamental compreender os limites objetivos da coisa julgada e identificar os obiter dictum, evitando-se incompreensões e deturpações capazes de gerar instabilidade e quebra da confiança.


[1] Para Ovídio Baptista da Silva, “o que transita em julgado é apenas a declaração que o magistrado faz na sentença de que tal ou qual preceito de lei incidiu, transformando-se na ‘lei do caso concreto’. Na ação de separação judicial, não é a modificação (corte do casamento) nem a criação do estado de separados que se tornarão imutáveis, mas a declaração de que o autor ou a autora da ação tinham direito de obter a separação, porque uma norma legal lhes reconhecia este direito”. SILVA, Ovídio Baptista da. Curso de Processo Civil. 5 ed. São Paulo: RT, 2001, p.498. Em sentido diverso, MOREIRA, José Carlos Barbosa. Eficácia da Sentença e Autoridade da Coisa Julgada.  In. Temas de Direito Processual Civil – Terceira Série. São Paulo: Saraiva, 1984.

[2] BOTELHO DE MESQUITA, José Ignacio. A coisa julgada. Rio de Janeiro: Forense, 2006. p.11-12.

[3] CÂMARA, Alexandre Freitas. Manual de Direito Processual Civil. 3 ed. Rio de Janeiro: GEN, 2024. ebook. Grifamos.

[4] STJ – REsp 2000438/PB, Relator: NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 05/05/2023.

[5] STJ – EREsp 1799800, Relator: Ministro PAULO SÉRGIO DOMINGUES, Data da Publicação DJ 07/06/2024.

[6] STJ – AgInt no AREsp 1298914/RJ, PRIMEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 03/10/2022.

[7] STJ – AgInt no AREsp 1419498/PR, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 17/11/2020.

[8] TARUFFO, Michele. Precedente e jurisprudência. Revista de Processo nº 199. São Paulo: RT, set., 2011, p. 145-146.

[9] STJ – EDcl no AgInt nos EDcl no AREsp 835285/DF, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 20/03/2018.

[10] STJ – REsp 1846719/RS, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/12/2019.

[11] CABRAL, Antonio do Passo. Coisa julgada e preclusões dinâmicas: entre continuidade, mudança e transição de posições processuais estáveis. 3. ed. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 354-355.

[12] Ver, enfaticamente, voto do Min. Luiz Fux no julgamento do RE 363889/DF, Rel. Min. Dias Toffoli, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 16/12/2011. Disponível em: https://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo631.htm Acesso em: 05.11.24.

[13] CÔRTES, Osmar Mendes Paixão. Recursos repetitivos, súmula vinculante e coisa julgada. Brasília: Gazeta Jurídica, 2018, p. 27.

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Marcelo Mazzola

Conselheiro - Conselho Administrativo

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