por Marcelo Mazzola
18 de março de 2016
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Por Marcelo Mazzola
Não é de hoje que se percebe, entre os juristas da família “romano-germânica”, filiados à escola da civil law, o interesse pelos ordenamentos anglo-saxônicos, alinhados à família da common law. Aliás, há muito Barbosa Moreira já defendia que posições rigidamente “isolacionistas” não se sustentam por tempo dilatado.[1]
Na acepção histórica da civil law, a lei era a fonte primária do ordenamento jurídico e os juízes funcionavam como a “boca da lei”. Já nos países da common law, a lei era criada pelos Juízes (judge-made) ou pelos tribunais (bench-made). Com o passar do tempo, essa dicotomia perdeu força, em razão dos influxos de um sistema em outro. É como se tivéssemos assistido à progressiva aproximação de dois círculos, a princípio separados por largo espaço, mas que se tangenciam, havendo uma área comum.[2]
No Brasil, a inspiração anglo-saxônica teve influência na modelagem de nosso sistema (criação dos juizados especiais cíveis, por exemplo), na incorporação de algumas ferramentas (destaque para as class action), e, principalmente, na gradativa valorização das decisões judiciais[3], o que restou evidenciado com a Emenda Constitucional nº 45/04, que introduziu a súmula vinculante e a repercussão geral. Daí porque alguns doutrinadores já falam em commonlização do direito pátrio[4], em que pese a diferença entre a súmula vinculante e os precedentes da common law, sobretudo em seus aspectos quantitativo e qualitativo.
No NCPC, a influência da common law é ainda mais forte. Exalta-se – como nunca antes na história desse país – a força dos “precedentes”.
O comando é claro. Os juízes e tribunais deverão observar as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; os enunciados de súmula vinculante; os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; e a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados (art. 927).
Em interessante abordagem crítica [5], Lenio Streck defende que o NCPC revoga por meio de um texto infraconstitucional o princípio constitucional da legalidade, já que, agora, o artigo 5º, II, da Carta Magna (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”) será lido como “os juízes não serão obrigados a decidir senão em virtude dos precedentes”.
Críticas à parte, é louvável a tentativa do NCPC de garantir a isonomia das decisões judiciais e assegurar a duração razoável do processo. Preocupa-nos, porém, a aplicação automática dessa sistemática. É preciso prudência, pois quase sempre as importações entram em nosso sistema de forma extravagante[6] e exigem, na lição de Barbosa Moreira, a aferição da compatibilidade entre o enxerto pretendido e a compleição do organismo que vai acolher[7].
Não falamos aqui do risco de engessamento da atividade judicante e do imobilismo jurisprudencial, temas que demandariam outro artigo, mas sim da banalização na invocação dos “precedentes”.
Sabemos que os juízes podem (e devem), de forma fundamentada, fazer a distinção dos casos quando não se tratar da mesma tese de direito (art. 489, § 1º, VI, 1.029, § 2º) – o que também é facultado às partes (artigos 1.037, § 9º, 1.042, § 1º, II, 1.043, § 5º) – mas a experiência revela que muitas vezes os magistrados conectam situações distintas (em uma tentativa de calçar o sapato direito no pé esquerdo), não apenas em razão do volume de processos, mas também pela dificuldade de identificação da similitude fática, capaz de autorizar a aplicação da ratio decidendi do “precedente” em determinado caso concreto.
Sob outro prisma, o NCPC inova e permite a cross examination, isto é, a possibilidade de a parte inquirir diretamente a testemunha trazida pela parte adversária (art. 459), o que já acontece no processo penal brasileiro (art. 212 do CPP, alterado pelo art. 1º da Lei nº 11.690/08) e também nos países da common law. A alteração é interessante, pois garante maior fluidez do depoimento e facilita o encadeamento lógico das ideias.
Podemos citar, ainda, o estímulo aos métodos alternativos de resolução de conflitos (os chamados Alternative Dispute Resolutions – inspirados no Multidoor Courthouse System), destacando-se a arbitragem, a mediação e a conciliação.[8] Boa iniciativa, pois há muito, realmente, a decisão adjudicada deixou de ser a melhor ferramenta para a pacificação de um conflito.
Por fim, podemos mencionar os negócios jurídicos processuais (arts. 190 e 200), cujas raízes históricas e ideológicas remetem ao court case management[9] do direito inglês, que preconiza o direito das partes de flexibilizarem o procedimento, alterarem a forma dos atos processuais e prevenirem riscos, inclusive os próprios litígios.
Em suma, nessa onda de commonlização do direito, alguns paradigmas serão rompidos e assistiremos a grandes transformações, mas devemos agir com cautela para não sacrificar a segurança em nome da celeridade e os direitos/garantias em prol da eficiência.
[1] BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. Notas sobre alguns aspectos do processo (civil e penal) nos países anglo-saxônicos. Temas de Direito Processual, 7. Série, São Paulo: Saraiva, 2001, pág.157.
[2] BARBOSA MOREIRA, Jose Carlos. O processo civil contemporâneo: um enfoque comparativo. Revista da EMERJ, v 6, nº 24, 2003, págs. 67/68.
[3] Vide, por exemplo, o artigo 38 da Lei nº. 8.038, de 28 de maio de 1990; a Emenda Constitucional nº 03/1993, que acrescentou o § 2º ao artigo 102 da Constituição Federal; e os artigos 285-A; 481, parágrafo único; 557; 475, § 3º; e 518, § 1º, do CPC de 1973.
[4] Termo utilizado no livro O Que é Isto – Os Precedentes e as Súmulas Vinculantes (Lenio Streck e Georges Abboud; 1ª. e 2ª. Ed; Livraria do Advogado, 2012).
[5] STRECK, LENIO. Novo CPC decreta a morte da Lei. Viva o common law”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2013-set-12/senso-incomum-cpc-decreta-morte-lei-viva-common-law.
[6] GRECO, LEONARDO. Instituições de Processo Civil, vol. I, Rio de Janeiro: Forense, 2009, pág. 4
[7] Obra citada na nota de referência1, pág. 157.
[8] por exemplo, arts. 3º, 139, V, 359, 694 do NCPC.
[9] A inspiração também vem do direito francês, com os denominados contrats de procédure.