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Marcas olfativas não são registráveis

por Sandra Leis

28 de outubro de 2004

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Quando a Casa Granado lançou seu polvilho anti-séptico, há cem anos, ou quando o setuagenário Leite de Rosas surgiu no mercado, não se podia imaginar que, um dia, fragrâncias deixariam de ser privilégio de talcos, sabonetes e perfumes.

Quando se inventou a goma de mascar, nem se imaginava que aquele cheirinho tutti-frutti pudesse ser usado na indústria metalúrgica, ou que a beleza e perfume das plumérias pudesse ultrapassar as cercas dos jardins e invadir ateliês de costura.

Parece loucura? Pois não é. Os aromas já são marcas. E por que não? É como se a volatilidade dos aromas se materializasse no produto. Quem não tem na sua memória aqueles cheiros da infância -o cheiro da comida que a vovó fazia, o cheiro da casa de fazenda onde passávamos as férias, e até mesmo o cheiro da pasta onde levávamos nossos livros escolares. Afinal, o que é uma marca senão um elo produto-memória? Por isso, cada vez mais a indústria se apega aos nossos sentidos em busca de um diferencial para seus produtos.

Em 1990, o escritório de marcas e patentes dos Estados Unidos concedeu, a um cidadão americano, registro para o aroma das flores da pluméria para identificar linhas de costura e bordado. Concedeu, também, a uma empresa de Indiana, registro para o aroma de goma de mascar em fluidos para a indústria metalúrgica, e um cidadão da Califórnia registrou o aroma de uva para óleos lubrificantes para veículos. Na Inglaterra, a empresa Dunlop possui registro de um aroma de rosas em relação a pneus. Poderíamos ir a um posto de gasolina para trocar o óleo e calibrar os pneus e deixar o local literalmente perfumados! Por sua vez, o escritório de marcas europeu (OHIM) registrou como marca o cheiro de grama recém-cortada para identificar bolas de tênis. Mais recentemente, na Argentina, as Cortes reconheceram como marca o aroma de frutas para embalagens de xampu, da L”Oreal.

Em vários países, como Estados Unidos, Austrália e França, as chamadas marcas olfativas são registráveis porque suas leis possuem uma definição de marca bastante ampla e flexível, que comporta não só as marcas tradicionais, que normalmente conhecemos, mas também essas formas não-convencionais. A diretiva da Comunidade Européia define marca como um sinal capaz de ser representado graficamente e de distinguir produtos ou serviços. Os exemplos acima mostram que embora os aromas tenham, por sua própria natureza, um conceito abstrato, eles podem ser representados graficamente por meio de palavras, desde que sua definição seja precisa, clara, de fácil identificação, e que possam distinguir determinado pro-duto ou serviço.

No Brasil, no Canadá e no Japão, por exemplo, não se permite o registro de marcas olfativas. Nossa lei exige, como condição para registro, que a marca seja visualmente perceptível. Os aromas certamente não o são, mas muitos deles são perfeitamente identificáveis e descritíveis pelo ser humano, como o aroma inconfundível da grama recém-cortada pré-citado. Deveria a nossa lei comportar uma interpretação mais flexível no sentido de entender como visualmente perceptível não o aroma em si mas a sua materialização, ou seja, a expressão desse aroma por meio de sua descrição com palavras? No caso de ser necessário comprovar o uso da marca, num litígio, por exemplo, que provas de uso seriam aceitas para uma marca olfativa? Estas são questões que terão que ser examinadas e solucionadas pelo órgãos responsáveis pelo registro de marcas e pelos tribunais de cada país, em cada caso concreto. Como o direito está sempre um passo atrás da realidade, as normas que regem estes conceitos deverão ser adaptadas ou, pelo menos, interpretadas a fim de encarar essa nova realidade. Enquanto isso, nós, brasileiros, que temos uma terra tão rica em todos os sentidos, ficaremos com os nossos sentidos tolhidos, até que possamos registrar o nosso cheiro do pão de queijo, do acarajé, da moqueca capixaba, das madeiras da Amazônia, em papéis, canetas, camisetas e onde mais a imaginação permita, torcendo para que os estrangeiros não o façam antes de nós, como fizeram com o nosso cupuaçu.

 

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Sandra Leis

Advogada, Agente da Propriedade Industrial

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