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Irretroatividade do Estatuto do Idoso: a incidência ou não do Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741/2003) aos contratos de planos de saúde celebrados antes

por Marcelo Mazzola

18 de abril de 2013

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Por Marcelo Mazzola

Visão Jurídica – n°83, p.22

A discussão é sensível, complexa e tem inegável densidade constitucional. De um lado, estão as operadoras de planos de saúde, que defendem a irretroatividade do Estatuto do Idoso aos contratos de planos de saúde celebrados antes de sua vigência.

De outro, estão os consumidores e os entes coletivos de proteção aos beneficiários de planos de saúde, que defendem a aplicação do Estatuto do Idoso a todos os contratos de planos de saúde em vigor, independentemente de sua data de celebração.

A grande discussão gira em torno da possibilidade (ou não) do aumento das mensalidades dos idosos (pessoas com  idade igualou superior a 60 anos, conforme indicado no art. 1° da Lei n° 10.741/2003), já que o art. 15, S 3°, da referida Lei estabelece que:

Art. 15.É assegurada a atenção integral à saúde do idoso, por intermédio do Sistema Único de Saúde – SUS, garantindo-lhe o acesso  universal e igualitário, em conjunto articulado e  contínuo das ações e serviços, para a prevenção, promoção, proteção e recuperação da saúde, incfuindo a atenção especial às doenças que afetam preferencialmente os idosos.

~ 3º- É vedada a discriminação do idoso nos planos de saúde pela cobrança de valores diferenciados em.razão da idade.

Sob a ótica do Estatuto do Idoso, o plano de saúde não poderia aumentar a mensalidade dos beneficiários  quando estes atingissem a faixa de sessenta anos. Entretanto, existem muitos contratos de planos de saúde em  curso (assinados antes do advento do Estatuto do Idoso) que preveem aumentos significativos quando os beneficiários alcançarem as faixas dos sessenta e setenta anos.

Convém apenas registrar que, a partir de 1° de janeiro de 2004 (início da vigência do Estatuto do Idoso), todos os novos contratos de planos de saúde celebrados pelas operadoras já estão (ou deveriam estar) em sintonia com as faixas de reajuste definidas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (de acordo com a Resolução n° 63/03, o último aumento deve ser praticado aos C/ 59 anos). 

Significa dizer que a discussão a ser dirimida pelo STF se restringe aos contratos de planos de saúde celebrados antes da vigência do Estatuto do Idoso. A polêmica é realmente grande e atualmente existem milhares de ações individuais espalhadas pelo país  (propostas pelos respectivos beneficiários) e dezenas de demandas coletivas (ajuizadas por entidades de  proteção ao consumidor), nas quais se discute exatamente o tema em exame.

Note-se que, como a matéria ainda nao está pacificada, existe uma atmosfera de insegurança no Sistema de Saúde Suplementar, especialmente em razão do expressivo número de beneficiários ("idosos") nessa condição.

O clima de apreensão também decorre da alta complexidade da discussão, já que existem muitos argumentos técnicos e jurídicos capazes de sustentar as respectivas teses de defesa.

No caso das operadoras de planos de saúde, por exemplo, defende-se a existência do ato jurídico perfeito (contratação celebrada antes da vigência do Estatuto do Idoso), invoca-se o direito adquirido (a expectativa das operadoras de praticarem os reajustes pactuados à luz do princípio da força obrigatória dos contratos) e a própria garantia do equilíbrio contratual.

Para os entes coletivos e consumidores em geral, os reajustes para beneficiários com sessenta anos ou mais são manifestamente abusivos e violam o Estatuto do Idoso, que, na visão dos assim entendem, deveria ser aplicado automaticamente a todas as contratações em vigor, por se tratar de uma lei de "ordem pública".

Cumpre destacar que o Superior Tribunal de Justiça já proferiu algumas decisões sobre o tema (sob o viés infraconstitucional evidentemente), mas nem mesmo naquela Corte Especial há uma uniformidade de entendimentos.

Por exemplo, em precedentes da Terceira Turma, o entendimento majoritário é no sentido de que são abusivos os reajustes praticados exclusivamente em razão da mudança de faixa etária, devendo, portanto, ser respeitado o Estatuto do Idoso (AgRg no Ag 1391405/ RS, AgRg no AREsp 96799/RS, AgRg no Ag 1382274/MG).

Todavia,. na própria Terceira Turma, já foram lançadas opiniões divergentes, podendo-se destacar, por exemplo, os votos dos Ministros Castro Filho e Humberto Gomes de Barros no REsp 809.329.

Por outro lado, a Quarta Turma, em recente precedente do Ministro Raul Araujo Gulgamento não unânime), firmou entendimento no sentido que  "somente o reajuste desarrazoado, injustificado, que, em concreto, vise de forma perceptível a  dificultar ou impedir a permanência do segurado idoso no ‘plano de saúde implica na vedada discriminação" (RESP 866840/SP).

A discussão é tão relevante no plano social e econômico que, como dito, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a "repercussão geral" da matéria, requisito obrigatório para o conhecimento e processamento do Recurso Extraordinário (art. 5437A do CPC).

O leading case é o RE 630852, no qual figura como Recorrente uma Cooperativa do Sistema UNIMED e como Recorrida uma consumidora do respectivo plano de saúde. Em primeiro grau, a sentença reconheceu a  abusividade do aumento de 50% praticado pelo plano de saúde quando a beneficiária completou a idade de sessenta anos, mas considerou válidos os reajustes autorizados anualmente pela ANS.

Tal decisão foi mantida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que, apesar de ter reconhecido o "conflito de diversos princípios constitucionais" e da ressalva do próprio Desembargador Relator (que reviu seu posicionamento anterior apenas para o "interesse maior da uniformização da jurisprudência junto às Turmas"), entendeu que o Estatuto do Idoso deve ser respeitado e observado, a fim de  impedir o reajuste praticado pela operadora de plano de saúde exclusivamente em razão da mudança da faixa etária.

Em seguida, o RE interposto pela Cooperativa Médica foi inadmitido pelo TJ/RS, ensejando a interposição de Agravo em RE para o STF, que veio a ser provido pela Ministra Ellen Gracie, determinando-se a sua reautuação como Recurso Extraordinário. Posteriormente, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a repercussão geral do tema com a seguinte ementa:  "PLANO DE SAÚDE. AUMENTO DA CONTRIBUIÇÃO EM RAZÃO DE INGRESSO EM FAIXA ETÁRIA DIFERENCIADA. APLICAÇÃO DA LEI 10.741/03 (ESTATUTODO-IDOSO) A CONTRATO FIRMADO ANTES DA  SUA VIGÊNCIA. EXISTÊNCIA DE REPERCUSSÃO GERAL."

Como se pode notar, a discussão é complexa e envolve um aparente conflito de vários princípios constitucionais. Sem a menor pretensão de exaurir a controvérsia, arriscamo-nos a emitir uma opinião sobre o assunto, após examinar algumas decisões já proferidas pelo Supremo Tribunal Federal em situações análogas.

Inicialmente, vale recordar a Medida Cautelar deferida em parte pelo Excelso Pretório nos autos da ADI1.931-8/DF, suspendendo a vigência de alguns dispositivos da Lei dos Planos de Saúde (Lei n° 9.656/1998), especialmente do art. 35-E. Tal dispositivo estabelece regras de reajuste por mudança de faixa etária de beneficiários com idade de 60 (sessenta) anos ou mais, cujos contratos foram celebrados antes da vigência da Lei dos Planos de Saúde.

Para o Ministro Mauricio Correa, "a retroatividade determinada por esses preceitos faz incidir regras de legislação nova sobre cláusulas contratuais preexistentes, firmadas sob a égide do regime legal anterior, que, a meu ver, afrontam o direito consolidado das  partes, de tal modo que violam o princípio consagrado no inciso XXXVI do artigo 5° da Constituição Federal e põem-se em contrataste com a jurisprudência desta Corte’;.

Atualmente, aguarda-se o julgamento da referida ADI, que, desde 2004, está sob a Relatoria do Ministro MARCO AURELIO. Ora, se o STF entende, ainda que em juízo de cognição sumária, que a mudança das regras de reajuste por mudança de faixa etária em relação a contratos celebrados antes da vigência da Lei n° 9.656/1998 viola o direito adquirido e o ato jurídico perfeito, o mesmo raciocínio pode ser aplicado a instrumentos celebrados antes do advento do Estatuto do Idoso.

Ou seja, se os contratos foram firmados antes da vigência da Lei n01 0.741/2003, os respectivos percentuais de reajuste ali pactuados devem ser respeitados e observados, independentemente da posterior vigência do Estatuto do Idoso.

Por outro lado, não soa convincente o argumento frequentemente utilizado pelos beneficiários de planos de saúde no sentido de que, por se tratar de uma lei de ordem pública, o Estatuto do Idoso deve ser aplicado automaticamente aos contratos em vigor (considerados "cativos por longa duração"), inclusive em relação àqueles instrumentos firmados antes da sua vigência.
 

Isso porque há muito o STF consolidou o entendimento de que "o disposto no artigo 5°, XXXVI, da Constituição Federal se aplica a toda  e qualquer lei infraconstitucional, sem qualquer distinção entre lei de direito público e  privado, ou entre lei de ordem pública e lei dispositiva" (RTJ 143/724, ReI. Min. Moreira Alves).

Em brilhante parecer sobre o tema, o Professor Luis Roberto Barroso assinalou que "a lei nova não pode afetar um contrato já firmado, nem no que diz respeito à sua constituição válida, nem a sua eficácia. (…) As conclusões acima não se alteram quando estejam em questão contratos de trato sucessivo ou de execução continuada – como é o caso dos contratos de planos e seguros de saúde – cuja característica é exatamente a produção dos efeitos que se protraem no tempo. Também esses ajustes consubstanciam atos jurídicos perfeitos e regem-se, para todos os seus efeitos, pela lei vigente ao tempo de sua constituição."

No mesmo sentido, não parece lógica e razoável a afirmação de que o aumento é ilegal e abusivo pelo simples fato de o consumidor ter atingido a idade de sessenta anos, mesmo tendo assinado o respectivo contrato antes da vigência do Estatuto do Idoso. Isso porque, pode acontecer, por exemplo, que o contrato de plano de saúde não preveja aumentos gradativos durante a relação contratual, postergando para a faixa dos 60 e 70 anos os aumentos mais significativos. 

Nesses casos, impedir a aplicação desses reajustes unicamente em razão da superveniência da faixa etária é,  com todo o respeito aos que assim não pensam, romper o equilíbrio contratual (ignorando os cálculos atuariais)  e criar uma situação de onerosidade excessiva para as operadoras de planos de saúde, justamente em um período onde os idosos utilizam com maior frequência os planos de saúde e os riscos são abstratamente mais elevados. 

Ora, se a Lei n 9.656/1998 autoriza o reajuste por mudança de faixa etária (art. 15), desde que as faixas e os percentuais estejam definidos no contrato de plano de saúde, e se a lei de ordem pública deve respeitar o ato jurídico perfeito e o direito adquirido, por que impedir as operadoras de planos de saúde de praticar os reajustes pactuados (referentes à mudança de faixa etária) nos contratos celebrados antes da vigência do Estatuto do Idoso?

É bem verdade que esse percentual de reajuste não pode ser abusivo a ponto de inviabilizar a continuidade da contratação ou configurar uma barreira intransponível à manutenção do vínculo do consumidor com o plano de saúde.
 

Caso contrário, estarse-ia violando não apenas dispositivos consagrados do Código de Defesa do Consumidor (arts. 4°, 111, e 51, IV), mas também princípios constitucionais e infraconstitucionais, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana (art. 1°,  111d,a CF), a proteção aos idosos (art. 230 da CF), a boa fé objetiva (arts. 113 e 422 do CC) e etc.

Na prática, esse "abuso" pode ficar mais evidente pela ausência de uma justificativa razoável capaz de embasar um aumento extremamente exagerado, se comparado com os percentuais de reajuste anteriormente aplicados.  De qualquer forma, trata-se de questão muito delicada que deve ser analisada caso a caso, diante das  peculiaridades e nuances da situação concreta em exame. Em suma, não será uma tarefa fácil para o STF delimitar os contornos da discussão e harmonizar os diversos princípios constitucionais e infraconstitucionais  um jogo. Não será uma surpresa se o STF trilhar o caminho da Irretroatividade do Estatuto do Idoso aos contratos celebrados antes de sua vigência (cbn base nos precedentes já proferidos em situaçõeE análogas), esclarecendo, porém, que a validade  de reajustes em razão da mudança de faixa etáriê deve ser examinada caso a caso, observandose certos requisitos e condições, como, por exemplo, i) se há expressa previsão do  reajuste e dos percentuais no instrumento negociai; ii)  se existe uma justificativa plausível capaz de embasar o reajuste praticado naquele patamar específico; iii) se restou observado o princípio da boa-fé objetiva, impedindo-se, com isso, a aplicação de índices de reajuste desarrazoados ou aleatórios capazes de inviabilizar:a contratação; E  iv) se o aumento praticadc visa a manter o equilíbrio da relação contratual e impedir a ocorrência da onerosidade excessiva (art 478 do CC) para um dos contratantes.

Sem dúvida que essa análise minuciosa não pode ser feita de forma abstrata, sem individualização das situações de cada beneficiário, à luz da respectiva contratação. Como consequência, entendemos que uma discussão dessa magnitude não deve ser travada de forma genérica nos autos de uma Ação Civil Pública ou outra demanda coletiva com o propósito de discutir, abstratamente  para toda a massa), um suposto aumento abusivo dos reajustes praticados pelas operadoras de planos de saúde .

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Marcelo Mazzola

Socio, Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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