por Marcelo Mazzola
01 de novembro de 2024
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Por meio da ação rescisória, busca-se desconstituir um provimento jurisdicional transitado em julgado. Em regra, a demanda deve ser proposta no prazo de dois anos do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo (art. 975 do CPC/15)[1].
Vale registrar que nem sempre o julgamento da ação rescisória levará ao rejulgamento da causa original, podendo se limitar à desconstituição da decisão impugnada. É o que ocorre, por exemplo, quando a causa de pedir da ação rescisória envolve a violação de coisa de julgada (efeitos positivos). Uma vez acolhida a ação rescisória para reconhecer a existência de coisa julgada, será desconstituída a decisão rescindenda, sem necessidade de novo julgamento do processo originário. Ou seja, haverá o juízo rescindente, mas não haverá o juízo rescisório.
A ação rescisória pode ser proposta por quem foi parte no processo ou pelo seu sucessor a título universal ou singular; pelo terceiro juridicamente interessado; pelo Ministério Público (se não foi ouvido no processo em que lhe era obrigatória a intervenção; ou quando a decisão rescindenda é o efeito de simulação ou de colusão das partes, a fim de fraudar a lei); e por aquele que não foi ouvido no processo em que a sua intervenção era obrigatória.
As hipóteses de cabimento da ação rescisória são taxativas e estão no art. 966 do CPC.
O foco do presente artigo será o cabimento da ação rescisória por erro de fato (art. 966, VIII e § 1º, do CPC/15), demanda que, algumas vezes, é utilizada como sucedâneo recursal em busca de um novo julgamento para a causa, e não para demonstrar a existência de um erro de fato. Portanto, analisar os seus requisitos de admissibilidade, inclusive à luz do entendimento jurisprudencial, pode auxiliar na compreensão da natureza e da abrangência dessa ação específica.
Antes de avançar, vale registrar que o CPC/73 previa o cabimento da ação rescisória por erro de fato quando o erro de fato resultasse de “atos ou de documentos da causa”. Já o CPC/15 estabelece que o erro de fato deve ser “verificável do exame dos autos”. Há algum tempo, a doutrina já apontava que a redação do código revogado “decorreu de erros na tradução do art. 395, 4, do CPC italiano, o que acaba por prejudicar a própria interpretação do dispositivo”[2].
Note-se que o CPC/15 ainda condensou os dois parágrafos do art. 485, IX, §§ 1º e 2º, do CPC/73 em apenas um, promovendo ajustes e estabelecendo que há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o
fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado (art. 966, VIII, § 1º).
Mas, afinal, o que é um erro de fato?
Em termos simples, o erro de fato compreende uma desatenção do juiz no exame dos autos, o que deve ser aferível pelos próprios elementos do processo (sem a produção de novas provas). Ou seja, não se trata de um erro de qualificação ou de valoração do material probatório. A ação rescisória por erro de fato não é sucedâneo recursal para discutir eventual error in iudicando após o trânsito em julgado[3] e tampouco a via adequada para “corrigir suposta injustiça da decisão, apreciar má interpretação dos fatos, ou reexaminar as provas produzidas nos autos”[4]. Caso contrário, qualquer pessoa insatisfeita com o julgado poderia manejar a ação desconstitutiva[5].
Na prática, o que se almeja é desconstituir pronunciamento judicial fruto da compreensão equivocada acerca do material fático-probatório. É o que acontece, por exemplo, quando a sentença “entende ter havido certo fato que não houve, ou ter ignorado a ocorrência de fato que efetivamente se constatou ter havido”[6].
A doutrina sugere algumas situações de erro de fato, quando, por exemplo, “o fato ficou evidenciado nos autos, mas foi negado pela decisão rescindenda; a decisão afirmou inexistir prova material, quando esta se encontra acostada aos autos; a decisão considera verdadeiro o documento, cuja falsidade é comprovada por outra prova constante dos autos”[7].
Para ilustrar o erro de fato, imagine-se a seguinte situação: uma decisão rejeita o pedido de ressarcimento de valores pagos por um dos contratantes, após a anulação do respectivo negócio jurídico, consignando que existiram “outras causas” (inexistentes) para tal pagamento, sem sequer apontá-las, desconsiderando, ainda, a inexistência de controvérsia no ponto sobre a origem do pagamento (cláusula contratual expressa). Ora, se não existiram outras razões para o pagamento (se não a própria cláusula contratual), a decisão não poderia afastar o pleito ressarcitório sob o fundamento de que o pagamento teria ocorrido por outros motivos. Nesse mesmo exemplo hipotético, também incorreria em erro de fato o pronunciamento judicial que assinalasse que o pagamento teria ocorrido por mera liberalidade do contratante, ignorando o fato de que os valores só foram pagos por força de disposição contratual específica.
Importante observar que o erro de fato que serve de fundamento para a ação rescisória deve guardar relação de causalidade com o resultado proclamado. Como assevera Alexandre Câmara, “é preciso que fosse outro o resultado do processo se o órgão julgador não tivesse aquela equivocada percepção do que constava dos autos, para só então admitir-se como rescindível o pronunciamento judicial”[8].
Entendido o erro de fato, cabe agora verificar outros requisitos a serem observados para a propositura dessa ação rescisória:
Em suma, a doutrina costuma apontar quatro requisitos (que devem ser conjugados) para propositura da ação rescisória por erro de fato, quais sejam: a) a sentença deve estar fundada em erro de fato (devendo, ainda, existir nexo de causalidade entre o erro de fato e a conclusão do prolator da decisão que se pretende desconstituir)[17]; b) o erro de fato deve ser apurável mediante o simples exame das provas nos autos; c) não ter havido controvérsia sobre o fato; e d) não ter havido efetivo pronunciamento judicial sobre o fato.
As decisões colacionadas neste artigo revelam que o STJ se escora nos referidos requisitos para rejeitar ações rescisórias ou acolhê-las, o que evidencia a necessidade de o autor comprovar na petição inicial, de forma didática e fundamentada, a presença dos aludidos pressupostos de admissibilidade.
[1] Quando a ação rescisória se pautar em prova nova (art. 966, VII), o termo inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da última decisão proferida no processo (art. 975, § 2). Por sua vez, nas hipóteses de simulação ou de colusão das partes (art. 966, III), o prazo começa a contar, para o terceiro prejudicado e para o Ministério Público, que não interveio no processo, a partir do momento em que têm ciência da simulação ou da colusão.
[2] BARIONI, Rodrigo. Alguns apontamentos sobre a ação rescisória no projeto do novo Código de Processo Civil. Disponível em https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/242954/000940002.pdf?sequence=3&isAllowed=y . Acesso em: 26.11.04. No mesmo sentido ALVIM, Teresa Arruda; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins. Ação rescisória e querela nullitatis: semelhanças e diferenças. 3. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022. p. 367.
[3] STJ, AgInt na AR 6601/DF, Rel. Min. Og Fernandes, Primeira Seção, DJe 16.04.2020.
[4] STJ, AgInt no AREsp 1000768/RS, Rel. Min. Maria Isabe Gallotti, Quarta Turma, DJe 07.12.2020. Na mesma linha CRAMER, Ronaldo. Art. 966. In: CABRAL, Antonio do Passo; CRAMER, Ronaldo (Coords.). Comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 1.422.
[5] RODRIGUES, Marco Antonio. Manual dos recursos – Ação rescisória e Reclamação. São Paulo: Atlas, 2017, p. 322. Em âmbito jurisprudencial, ver STJ, AgInt no AREsp 2003594/SP, Rel. Min. Rel. Raul Araújo, Quarta Turma, DJe 29.06.2022.
[6] PARRO, Fabiana Monteiro. O erro na ação rescisória. Dissertação (Mestrado em Direito). Universidade de São Paulo – USP. São Paulo, 2011. p. 97.
[7] ALVIM, Angélica A. Comentários ao código de processo civil. E-book. Editora Saraiva, 2017. Acesso em: 26.11.2024.
[8] CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação Rescisória. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 121.
[9] NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de Direito Processual Civil. Volume único. Salvador: JusPodivm, 2017, p. 1477.
[10] STJ, REsp 218.079/CE, Min. Rel. Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma, DJe 28.05.2007.
[11] STJ, AR 972/SP, Rel. Min. Edson Vidigal, Terceira Seção, DJ 19.02.2001.
[12] STJ, AR 4276/PB, Rel. Min. Jorge Mussi, Terceira Seção, DJe 05.10.2018.
[13] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. v. 5. Arts. 476 a 565. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 149.
[14] STJ, AR 5.196/RJ, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, Primeira Seção, DJe 19.12.2022.
[15] CÂMARA, Alexandre Freitas. Ação rescisória. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 81.
[16] STJ, AR: 5748/ES, Rel. Min. Regina Helena Costa, Primeira Seção, DJe 30/05/2022. Vide também AgInt na AR 6654/DF, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJe 26.10.2020.
[17] DIDIER JR., Fredie Didier; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil: Meios de impugnação às decisões judiciais e processo nos tribunais. 19. ed. rev. atual. e aum. São Paulo: JusPodivm, 2022. p. 648.