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A extensão do conceito de Concorrência desleal

por Peter Eduardo Siemsen e Rodrigo Borges Carneiro

01 de junho de 2007

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A proteção contra atos de concorrência desleal encontra origem nos princípios estabelecidos pela Constituição Federal de 1988, no tocante à ordem econômica, cabendo destacar a livre concorrência e a defesa do consumidor (art. 170, incisos IV e V) e a repressão ao abuso de poder econômico e à concorrência desleal (art. 173, §4°).

Percebe-se que o Estado, ao contrário de proibir a concorrência, quer e incentiva a competição como forma de fomento e desenvolvimento industrial, comercial e tecnológico. No entanto, para que a competição sobreviva, abusos no mercado devem ser coibidos e reprimidos por regras coercitivas.

Tal como na legislação anterior (Decreto-lei n° 7.903/1945), a Lei n° 9.279/1996 cuidou de elencar os crimes de concorrência desleal.

A Lei atual, sob o rótulo de “crimes de concorrência desleal”, além de listar praticamente todos os atos alinhados na Lei anterior, tipificou alguns previstos em títulos específicos nesta última, como por exemplo os crimes cometidos “pelo uso de expressão ou sinal de propaganda alheios” (no inciso IV) e aqueles cometidos “pelo uso indevido de nome comercial, título de estabelecimento e insígnia alheios” (no inciso V), e outros anteriormente não punidos, tais como os definidos no inciso XII, §1° (violação de segredos de fábrica e de negócio cometidos por empregador, sócio ou administrador da empresa a partir de desvios dos mesmos praticados por terceiros), no inciso XII (venda, exposição ou oferecimento à venda de produto supostamente objeto de pedido e/ou patente e desenho industrial registrado) e no inciso XIV (divulgação, exploração ou utilização, sem autorização, de resultados de testes ou outros dados não divulgados, cuja elaboração envolva esforço considerável e que tenham sido apresentados a entidades governamentais como condição para aprovar a comercialização de produtos).

A exemplo do que ocorreu com o Decreto-lei n° 7.903/1945, o legislador da Lei n° 9.279/1996, partiu de conceitos consagrados na Convenção da União de Paris, de 1883, para a proteção da propriedade industrial (art. 10 bis “Constitui ato de concorrência desleal qualquer ato de concorrência contrário aos usos honestos em matéria industrial e comercial”), para tipificar os atos de concorrência desleal, adaptando-os à nova realidade.

Gama Cerqueira, já alertava que, além da imprecisão das definições doutrinárias, “a realidade excede os conceitos, surgindo sempre novas formas de concorrência, antes insuspeitadas, que não se enquadram nas definições propostas, superando as suas previsões.” (Tratado da Propriedade Industrial, vol. II, Título X, Capítulo II, edição Revista Forense – 1982, p. 1.269).

Dentre os diversos tipos de concorrência desleal elencados na Lei de Propriedade Industrial, merece destaque o de “desvio de clientela” previsto no artigo 195, inciso III.

  • III – emprega meio fraudulento, para desviar, em proveito próprio ou alheio, clientela de outrem; (…).

O desvio de clientela consuma-se de variadas formas, tais como a imitação de fachadas, embalagens e conjunto-imagem de produtos e, mais recentemente com o advento da Internet, o registro malicioso e indevido de domínio por indivíduo que reproduz marca ou nome comercial de estabelecimento alheio, com o claro intuito de confundir usuário ou consumidor, prejudicar ou obter vantagens pecuniárias dos titulares das respectivas marcas e nomes comerciais também se insere nesta modalidade, não obstante a aplicação combinada com o art. 195, inciso V e art. 209 da Lei n° 9.279/1996.

A jurisprudência tem enfrentado diversas questões de “desvio de clientela”, merecendo citar os seguintes acórdãos com base na nova Lei de Propriedade Industrial:

  • Unânime da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo nos autos do agravo de instrumento n° 226.201-4, que definiu: “Ação cominatória – Indeferimento de pedido de antecipação dos efeitos da tutela – Site na Internet – Registro de nome de domínio na Internet que pode induzir a erro o consumidor – Exploração comercial de site que caracteriza concorrência desleal – Violação em tese, direito de utilização de marcas e símbolos de agremiação desportiva – Clube de futebol, a teor da Lei 9.615/98, equiparação à empresa, inclusive para efeito de exploração comercial de marcas e símbolos – Antecipação dos efeitos da tutela concedida – Recurso provido.” (Ementa n° 253253 – Relator: Paulo Hungria – 20.11.2001)

  • Unânime da Segunda Turma Julgadora da Primeira Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás nos autos da APELAÇÃO CÍVEL N. 65558-9/188, que definiu:” Entende-se como concorrência desleal o conjunto de condutas do empresário que, fraudulentamente ou desonestamente, busca afastar a freguesia do concorrente. Desta forma, para se aferir se existe a concorrência desleal, deve-se levar em conta não só a similitude fonética das marcas confrontadas, mas todo e qualquer ato de competição mercantil contrário aos usos honestos capazes de criar confusão, por qualquer meio, com o estabelecimento, os produtos ou a atividade industrial ou mercantil do concorrente, seja por similitude visual, local onde os produtos são comercializados, as embalagens, disposição etc. Assim, constatada a possibilidade de gerar a confusão de marcas entre o público consumidor, mantém-se a decisão que determinou ao proprietário da marca mais recente que modifique as características dos estabelecimentos onde são comercializados seus produtos, bem como repare as perdas e danos causados pelos atos de deslealdade.”(Ementa n° 253253 – Relator: Des. Vítor Barboza 26.11.2002 )

  • Unânime da Segunda Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarin nos autos da apelação cível N. 98.006382-5, que definiu: ” A comercialização de bebida da mesma espécie – RUM BACACHARI – de outra conhecida e afamada internacionalmente – RUM BACARDI -, acondicionada em vasilhame praticamente igual, com tampa, cores, logomarca e principalmente rótulos praticamente idênticos, com modificação apenas de pequenos emblemas e efígies, revela o propósito inconfessado de induzir em erro ou de confundir o consumidor, e com isso auferir dividendos, caracterizando prática constitucionalmente vedada ( art. 5, inc. XXIX, da CF ) de concorrência desleal, que deve ser prontamente coibida, com indenização dos prejuízos causados.” recurso desprovido. (Relator: Des. Gaspar Rubik – 22.09.2000).

Também é importante mencionar a proteção das expressões de propaganda. O crime contra expressão ou sinal de propaganda, antes elencado em capítulo próprio (capítulo IV do Decreto-lei n° 7.903, de 27.08.45), foi agora englobado pelo legislador dentro do rol daqueles crimes tipificados como concorrência desleal, isso porque a atual Lei de Propriedade Industrial não mais confere registro às expressões ou sinais de propaganda.

Assim, se o art. 177, do Decreto-lei n° 7.903 de 27.08.45, somente considerava como crime a violação de direito assegurado pelo registro de expressão ou sinal de propaganda, a nova Lei entende como violação enquadrada como prática de concorrência desleal o uso sem a devida autorização ou a imitação de expressão ou sinal de propaganda alheios.

Em outras palavras, para a configuração do crime de concorrência desleal nesta modalidade, independente do registro, basta que haja a utilização, sem autorização, ou a imitação de expressões ou sinais de propaganda, capaz de causar confusão.

Importante ressaltar que a não exigibilidade do registro para as expressões ou sinais de propaganda não significa que não há mais qualquer proteção, a não ser na esfera da concorrência desleal. Os sinais e expressões de propaganda, quando dotados de originalidade e criatividade, encontram ampla proteção dentro do campo do direito autoral.

Aliás, verifica-se cada vez mais comum nos tribunais a argüição cumulada de prática de concorrência desleal e violação de direito autoral, quando as partes são concorrentes.

Por último, cabe citar algumas modificações legislativas após a Lei de Propriedade Industrial que guardam relação com a tutela contra atos de concorrência desleal. Em particular cita-se:

  • Artigo 1147 do Novo Código Civil Lei 10.406/02, que dispõe que não havendo autorização expressa, o alienante do estabelecimento não pode fazer concorrência ao adquirente, nos cinco anos subseqüentes à transferência.

  • Lei 10.603/02, que dispõe sobre a proteção de informação não divulgada submetida para aprovação da comercialização de produtos e dá outras providências. A Lei, dentre outras medidas, estabeleceu prazos para a proteção das informações relativas aos resultados de testes ou outros dados não divulgados apresentados às autoridades competentes como condição para aprovar ou manter o registro para a comercialização de produtos farmacêuticos de uso veterinário, fertilizantes, agrotóxicos seus componentes e afins.

Em resumo, a Lei 9279/96 tem-se mostrado bastante eficiente para reprimir os expedientes desonestos na luta pela clientela, inclusive em relação a situações novas decorrentes do desenvolvimento tecnológico, como nos casos de nomes de domínio.

A conjugação das normas acima com aquelas específicas da tutela dos direitos de propriedade intelectual constitui um poderoso arsenal na luta das empresas contra violações nessa área. 

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Peter Eduardo Siemsen

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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Rodrigo Borges Carneiro

Advogado, Agente da Propriedade Industrial

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