por Marcelo Mazzola
12 de abril de 2016
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Por Marcelo Mazzola
Uma das grandes promessas do novo CPC (NCPC) é o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR). Como o próprio nome já revela, trata-se de um incidente procedimental autônomo, inspirado em modelos consagrados no direito alienígena – ainda que com adaptações –, que tem como finalidade garantir a isonomia das decisões judiciais, evitando a chamada Jackpot Justice e assegurando, ao mesmo tempo, a duração razoável do processo.
O IRDR poderá ser instaurado sempre que existir uma repetição de processos versando sobre a mesma questão de direito e houver risco de ofensa à isonomia e à segurança jurídica. Tais requisitos são cumulativos e devem estar demonstrados no pedido de instauração do incidente.
Em apertada síntese, funcionará assim: presentes os requisitos, o IRDR será dirigido ao Presidente do Tribunal local, por oficio (juiz ou relator) ou petição (partes, MP e Defensoria Pública). Admitindo o incidente pelo órgão competente (art. 981), o que deverá ser objeto de ampla publicidade (art. 979), o relator, dentre outras providências, suspenderá os processos pendentes, individuais ou coletivos, que tramitam no Estado ou na região (art. 982, I). Depois do julgamento, que deverá ser precedido do amplo contraditório e da participação dos interessados (art. 983), a tese jurídica será aplicada a todos os processos em curso, e também futuros, individuais ou coletivos, que versem sobre a mesma questão de direito e que tramitem na área do respectivo tribunal, inclusive nos juizados especiais (art. 985).
Nesse momento de sedimentação do incidente, surgem muitas dúvidas e o NCPC não traz uma resposta precisa para todas elas. Por exemplo, quantos processos versando sobre a mesma questão de direito são suficientes para caracterizar a “efetiva repetição de processos”? A matéria de direito pode compreender questões de direito processual ou apenas de cunho material? Para que esteja configurado o “risco à isonomia e à segurança jurídica”, é necessário que várias demandas já tenham sido julgadas em sentido conflitante ou basta a possibilidade de decisões contraditórias? É preciso que já exista um recurso pendente no tribunal para que seja admitido o IRDR? É recorrível a decisão do órgão colegiado que rejeitar a instauração do IRDR? Pode o juiz solicitar a instauração do IRDR em processo ainda não decidido ou somente quando da remessa do respectivo feito ao tribunal por força de recurso ou reexame necessário? Apenas os legitimados do art. 977, II e III (partes, MP e Defensoria) podem requerer ao STJ ou STF a suspensão de todos os processos individuais ou coletivos repetitivos (art. 982, § 3º) ou também os demais interessados, inclusive o amicus curiae?
Algumas dessas questões e outras controvérsias estão sendo debatidas pelos processualistas e posicionamentos já foram assentados[1].
Poderíamos enfrentar cada um dos questionamentos acima, mas, diante da reduzida dimensão deste artigo, iremos examinar uma situação muito relevante que diz respeito aos efeitos da suspensão das ações repetitivas por força da decisão de admissão do IRDR.
De acordo com NCPC, os processos ficam suspensos pelo prazo de 1 (um) ano e, após esse prazo, voltam a correr normalmente, salvo decisão fundamentada do relator em sentido contrário (art. 980 e seu parágrafo único).
Surgem então novas indagações. O processo fica totalmente paralisado nesse prazo de 1 (um) ano? O que pode ser apreciado pelo juiz da causa suspensa? Ele pode julgar um dos pedidos não relacionados ou que não sejam prejudiciais à matéria objeto do IRDR?
Pois bem, inicialmente vale registrar que o próprio NCPC ressalva que, durante a suspensão, o pedido de tutela de urgência será dirigido ao juízo onde tramita o processo suspenso (art. 982, § 2º). Claro, não seria razoável permitir que uma situação de urgência capaz de causar dano ou lesão a direito não fosse tutelada pelo Estado (art. 5º, XXXV, da CF).
Entendemos que a decisão do relator que determina a suspensão das ações repetitivas não é um sopro górgono[2] capaz de petrificar o processo. Este não fica congelado e adormecido (Enunciado nº 205 do FPPC).
Na verdade, além das tutelas de urgência, o juiz pode, por exemplo, homologar o pedido de desistência da ação, o que, porém, não impedirá o exame de mérito do incidente (art. 976, § 1º).
Nada obstante, o juiz pode dar andamento ao feito, determinando providências necessárias e avançando na instrução probatória em relação às demais matérias de direito e de fato que não tenham relação ou subordinação com o tema do IRDR.
Mais do que isso: sustentamos que o juiz pode julgar parcialmente o mérito (art. 356), providência que tem cabimento quando um ou mais dos pedidos formulados, ou parcela deles, mostrar-se incontroverso ou estiver em condições de imediato julgamento (desnecessidade de novas provas ou o réu for revel e não houver protestado pela produção de prova).
Imaginemos a hipótese de o autor, que ainda não tem uma marca registrada no INPI, ajuizar uma demanda com base em dois fundamentos distintos: infração de marca e violação de direito autoral, formulando os respectivos pedidos indenizatórios. Pode ser que o tema marcário não possa ser julgado desde logo (por força de eventual IRDR em que se decidirá se o depositante de um pedido de registro de marca pode compelir alguém a se abster de usar o sinal depositado, ou, ainda, se a indenização por dano material decorre da infração em si ou se os prejuízos precisam ser efetivamente demonstrados). Nesse exemplo ilustrativo, nada obsta que o juiz, verificando que o processo não demanda a produção de outras provas e se encontra em condições de imediato julgamento, enfrente e decida a alegada violação de direito autoral e o respectivo pedido indenizatório. Caberá agravo contra tal decisão (art. 356, § 5º).
Uma flexibilização da regra de suspensão das ações repetitivas será um grande avanço[3] e prestigia a celeridade e a duração razoável do processo (parte da causa será decidida desde logo), a economia processual (o autor optou por cumular os pedidos ao invés de propor duas demandas), efetividade (permitir a realização dos direitos em menor tempo) e a segurança jurídica (eliminação de incertezas), princípios norteadores do NCPC.
Em suma, propõe-se uma interpretação sistemática, a fim de que os efeitos da mencionada suspensão dos processos repetitivos se restrinjam às matérias relacionadas ou prejudiciais ao tema de direito objeto do IRDR, não impedindo, porém, o julgamento parcial do mérito em relação às questões não vinculadas ou afetadas pelo incidente.
1 Vide os Enunciados nºs 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 95, 206, 342, 343, 345, 347, 349, 473, 481, 556, 605 e 606 do FPPC
2 Górgona é uma criatura da mitologia grega que tinha o poder de transformar todos que olhassem para ela em pedra. Conta-se que existiam três górgonas: as três filhas de Fórcis e Ceto. Seus nomes eram Medusa, "a impetuosa", Esteno, "a que oprime" e Euríale, "a que está ao largo".
3 MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. TEMER, Sofia. O Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas no novo Código de Processo Civil. Revista de Processo, vol. 243/2015, p.283-331, mai 2015 DTR2015/7913