por Marcelo Mazzola
03 de junho de 2019
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Para a construção de uma sociedade “livre, justa e solidária”, não pode existir qualquer tipo de preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, I e IV, da CF).
Além disso, deve-se ter em mente que a dignidade da pessoa humana é um dos cânones do Estado Democrático de Direito (art. 1º, III, CF).
De acordo com a Constituição Federal, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, sendo que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações”. A Carta Magna também assegura a proteção à família “na pessoa de cada um dos que a integram” (arts. 5º, caput e I, c/c 226, §§ 5º e 8º, da CF).
Mas nem sempre foi assim.
Registros históricos
O preconceito é fenômeno secular e, de certo modo, se confunde com a própria história da civilização, ao menos em boa parte do mundo.
Nos dias de hoje, chega a ser difícil acreditar que as mulheres já foram equiparadas a escravos e estrangeiros (na democracia ateniense); consideradas “amaldiçoadas” pela igreja católica (na idade média); e cruelmente perseguidas como bruxas (no tempo da inquisição).
E o que dizer da proibição das mulheres de participarem dos Jogos Olímpicos, podendo ser condenadas à morte, caso fossem flagradas assistindo às competições? Tempos estranhos.
A situação da mulher à luz do Código Civil de 1916 e alguns avanços legislativos
No Brasil, o Código Civil de 1916 relevava às mulheres um papel de submissão. A força física do homem era travestida em poder e autoridade.
Nesse contexto, as mulheres eram consideradas relativamente incapazes (equiparadas aos menores, pródigos e silvícolas) e todas as decisões familiares ficavam a cargo do marido (art. 233), que, inclusive, devia autorizar o ingresso da esposa no mercado de trabalho (art. 242, II).
Por muito tempo as mulheres também não puderam votar, o que só foi alterado com o Código Eleitoral de 1932 (Decreto nº 21.076/32).
Com a CLT de 1943, a proteção à maternidade foi finalmente assegurada, prevendo-se o direito à estabilidade por determinado período e à licença maternidade.
Nessa trajetória histórica, o Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121/62) eliminou a incapacidade relativa da mulher casada, prevendo expressamente a colaboração da mulher na “chefia” da sociedade conjugal (arts. 233 e 380).
Em 1977, foi editada a Lei do Divórcio (Lei nº 6.515/1977), que também trouxe avanços significativos. A mulher não estava mais obrigada a acrescentar o sobrenome do marido (art. 240, parágrafo único) e o casamento poderia ser dissolvido, desfazendo-se o vínculo matrimonial, permitindo que homens e mulheres divorciados pudessem seguir novos caminhos.
A consagração da igualdade na Constituição Federal de 88 e os reflexos normativos
Sem dúvida, a Constituição Federal de 1988 foi o grande marco normativo para a igualdade de gênero, pois positivou a equiparação entre homens e mulheres (arts. 5º, caput e I, c/c 226, § 5º, da CF).
A partir de então, muitas leis infraconstitucionais incrementaram a proteção da mulher, prestigiando a igualdade de gênero.
A propósito, vale citar o Código Civil de 2002 (“CC/02”), que, em seu art. 5º, não traz qualquer distinção entre homens e mulheres, estabelecendo que qualquer “pessoa”, ao completar os 18 anos, torna-se plenamente habilitada à prática dos atos da vida civil.
Por sua vez, o art. 1.631 ratifica a ideia de que o exercício do poder familiar cabe aos “pais”, sendo estes responsáveis pela criação dos filhos.
O código também estabelece que o planejamento familiar é de “livre decisão do casal” (art. 1.565, § 2º) e reforça que qualquer dos cônjuges poderá, querendo, acrescentar ao seu o sobrenome do outro (art. 1.656, parágrafo único).
Por outro lado, ainda é possível perceber um “cheiro de roupa velha” no CC/02. É o caso, por exemplo, do art. 1.600, que não confere credibilidade à palavra da mulher, ao estatuir que “não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade.”.
Nesse percurso evolutivo, a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06) materializa valiosíssimo instrumento de proteção à mulher. Em linhas gerais, o diploma tipifica e define a violência doméstica e familiar contra a mulher, indicando expressamente as formas de agressão (física, psicológica, sexual, patrimonial e moral). Além disso, cria Juizados Especializados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, com competência cível e criminal, prevendo, ainda, as penas ao agressor e as medidas protetivas necessárias.
A igualdade de gênero no processo civil
No plano do processo civil especificamente, tema central deste artigo, algumas reflexões também são importantes.
Contaminado pelos princípios e valores da época, o CPC de 1939 exalava forte carga discriminatória.
A mulher casada, por exemplo, salvo algumas exceções, não podia comparecer em juízo sem autorização do marido (art. 82). Também não podia ser nomeada inventariante se, ao tempo da morte de seu cônjuge, não estivesse, “por culpa sua, convivendo com ele” (art. 469, I).
Em relação ao CPC/73, editado em contexto bem diferente, os avanços foram significativos, mas não suficientes para desidratar as constantes discussões envolvendo a desigualdade de gênero.
Um dos artigos que mais suscitava polêmica era o art. 100, inciso I (com redação alterada pela Lei do Divórcio), que previa a competência do foro da mulher para a ação de separação dos cônjuges e a conversão desta em divórcio, bem como para a anulação de casamento.
A doutrina se dividia quanto à constitucionalidade da norma, mas, em 2011, o STF reconheceu que o dispositivo infraconstitucional não vulnerava o princípio constitucional da isonomia (RE 227.114/SP).
Outro dispositivo legal que refletia esse tratamento não isonômico era o art. 1.121, inciso IV, que previa como requisito da petição inicial da ação de separação consensual “a pensão alimentícia do marido à mulher, se esta não possuir bens suficientes para se manter”. A hipótese inversa (pensão da mulher ao marido) sequer era cogitada.
Chegamos, enfim, ao CPC/15, diploma tingido com verniz constitucional (art. 1º) e dotado de forte carga democrática.
Diferentemente dos códigos de 39 e 73, o legislador do CPC/15 não empregou nenhuma vez a palavra “mulher”, o que, por si só, já indica um novo direcionamento axiológico no que tange à igualdade de gênero. A observação é relevante porque, no passado, quando a palavra “mulher” era utilizada pelo legislador, quase sempre se conectava a algum fato/ato discriminatório.
No capítulo do divórcio e da separação consensual, resta consolidado o entendimento de que a obrigação de pagamento de pensão alimentícia não é uma via de mão única (do homem em relação à mulher), mas “entre os cônjuges” (art. 731, II), o que faz total sentido e reflete, inclusive, a realidade de muitas famílias brasileiras.
Por sua vez, em relação ao foro competente para a “ação de divórcio, separação, anulação de casamento e reconhecimento ou dissolução de união estável”, houve uma sensível alteração que merece ser destrinchada.
O foro competente não é mais do domicílio da mulher. Existe agora uma ordem sequencial. Será, inicialmente, do “domicílio do guardião de filho incapaz”. Porém, caso não haja filho incapaz, será do “último domicílio do casal”. Por fim, se nenhuma das partes residir no antigo domicílio do casal, o foro será aquele do “domicílio do réu” (art. 53, I, a, b e c).
Há, assim, um reposicionamento do foco normativo, que antes focava em presunção implícita de incapacidade/dependência da mulher e que agora se preocupa – ao menos no primeiro momento – com a proteção dos interesses do filho incapaz.
Com isso, abole-se a ideia de vulnerabilidade da mulher e a presunção de que, ao final dos relacionamentos, é sempre ela a maior prejudicada economicamente.
No ano de 2016, a Lei Julia Matos (Lei nº 13.363) inseriu alguns dispositivos no Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e no CPC/15.
Em relação ao Estatuto da OAB, foram garantidos alguns direitos à advogada gestante, como, por exemplo, entrada em tribunais sem ser submetida a detectores de metais e aparelhos de raio x, e a reserva de vaga em garagens dos fóruns dos tribunais (art. 7º-A, I, a e b).
Às gestantes, lactantes e adotantes também foi garantida preferência na ordem de sustentação oral e nas audiências a serem realizadas. Especificamente no caso da advogada adotante ou que der à luz, assegurou-se, ainda, a suspensão dos prazos processuais, quando for a única patrona da causa, desde que haja notificação por escrito ao cliente (art. 7º-A, III e IV).
A prática, porém, revela que tais previsões não estão sendo inteiramente respeitadas.
Recentemente, uma advogada que havia dado a luz há menos de um mês e pleiteou o adiamento da audiência teve seu pedido indeferido. Na visão do magistrado trabalhista, a advogada poderia perfeitamente substabelecer o caso, não se justificando a suspensão do ato processual. Na sequência, a OAB/RJ impetrou mandado de segurança, tendo sido concedida liminar para suspender a audiência.
Paralelamente, percebe-se que alguns órgãos fracionários de tribunais não vêm garantindo a preferência das advogadas grávidas para sustentação oral, seja pela falta de uso dessa prerrogativa pela própria gestante, seja por desconhecimento da norma. Nesse contexto, é preciso maximizar a divulgação desse direito da gestante. Uma boa medida pode ser a inserção de avisos nos sites da OAB e dos tribunais, assim como nas próprias sessões de julgamento.
No que tange aos impactos da Lei Julia Matos no CPC/15, alterou-se o artigo 313, que recebeu mais dois incisos. Entre as hipóteses de suspensão do processo, foi incluída a suspensão do processo “pelo parto ou pela concessão de adoção, quando a advogada responsável pelo processo constituir a única patrona da causa” (inciso IX); e “quando o advogado responsável pelo processo constituir o único patrono da causa e tornar-se pai” (inciso X).
Além disso, foram incluídos mais dois parágrafos ao art. 313, estabelecendo-se que: a) no caso do inciso IX, o período de suspensão será de 30 (trinta) dias (§ 6º); e b) no caso do inciso X, o período de suspensão será de 8 (oito) dias (§ 7º).
Sem dúvida, as alterações foram positivas. Afigura-se absolutamente razoável e condizente com o princípio da dignidade da pessoa humana a suspensão do processo em momento tão sublime e especial na vida de pais e mães.
A diferença quanto ao prazo de suspensão do processo (30 dias para a advogada mãe e 8 dias para o advogado pai) traz em si incoerências. Isso porque, independentemente de eventuais questões fisiológicas (que, a rigor, sequer se aplicam ao caso de adoção), cabe a ambos o dever de cuidado com o filho, sendo iguais os seus direitos e obrigações. Justificar-se-ia, assim, a equiparação dos prazos.
Além disso, a regra pode causar prejuízo na hipótese de adoção somente pelo advogado homem, já que, nesse caso, a suspensão do processo em que atua será somente de 08 dias, ao passo que, no caso da advogada adotante, será de 30 dias.
Nada obstante, a norma é omissa em relação à incidência dos referidos prazos na hipótese de guarda judicial provisória para fins de adoção, o que pode gerar debates quanto à possibilidade de interpretação extensiva.
Outra questão altamente sensível consiste na obrigatoriedade de participação da mulher vítima de violência doméstica em audiências de mediação/conciliação (seja no procedimento comum – art. 334, seja nas ações de família – art. 695).
Embora o CPC/15 estabeleça que as audiências de mediação/conciliação são obrigatórias (arts. 334, caput, e 695, caput), observada apenas as hipóteses de dispensa do ato processual (art. 334, § 4º, I e II), não se pode fazer uma interpretação literal das normas.
Como se sabe, ao aplicar o ordenamento jurídico, “o juiz atenderá aos fins sociais e às exigências do bem comum, resguardando e promovendo a dignidade da pessoa humana e observando a proporcionalidade, a razoabilidade, a legalidade, a publicidade e a eficiência” (art. 8º).
A nosso sentir, quando houver medida protetiva deferida em favor da mulher, pensamos que a sua dispensa para comparecer à audiência de mediação/conciliação deve ser automática, bastando a comunicação e a respectiva comprovação. Afinal de contas, não faz sentido colocar agressor e agredida frente a frente, potencializando ainda mais os transtornos já causados.
A igualdade do homem-juiz e da mulher-juíza
Recentemente, noticiou-se que, em Portugal, um advogado que defendia um acusado de abusar de sua filha requereu ao Tribunal que a desembargadora relatora fosse afastada do processo e que fosse substituída por um juiz desembargador homem. A justificativa: ela era uma mulher e, provavelmente, uma mãe.
A justificativa acima é odiosa e desconsidera que o fato de ser mais sensível ao conflito por ser mulher e por ser mãe não é suficiente para a quebra da imparcialidade. A hipótese fomenta a desigualdade de gênero que tanto se combate a partir da ideia de que o simples fato de ser mulher e, provavelmente, mãe, seria suficiente para comprometer a imparcialidade da julgadora.
Na realidade, a hipotética quebra de neutralidade somente seria verificável a partir da fundamentação de suas decisões, ocasião em que se poderia constatar, do ponto de vista científico, o eventual afastamento do direito tendo como pano de fundo a sua bagagem, a sua visão de mundo ou o seu gênero.
O ato de julgar talvez seja o mais relevante ato processual dentro de todo o contexto do CPC. A polêmica e as dúvidas acerca das diferenças entre julgamentos proferidos por juiz-homem e juíza-mulher se perpetuaram nas reflexões e com bases bem sólidas, como a natureza biológica, as experiências pretéritas e as vivências específicas e diferenciadas de cada gênero.
A pré-compreensão no ato de julgar é inerente ao gênero, contudo a natureza da mulher, reconhecidamente mais amorosa e que lhe dá, por consequência, uma avaliação dos fatos também mais amorosa, concede à mulher um olhar mais humilde e com mais realidade, vislumbrando prismas das relações sociais que nem sempre são bem percebidos e avaliados.
Essa percepção diferenciada decorre das atividades que a mulher tem de desenvolver na família, pois sua mente está desperta, naturalmente, para determinadas peculiaridades.
Contudo, essas diferenças jamais influenciam na formação da convicção amparada no direito, tampouco podem comprometer a imparcialidade e a neutralidade.
Conclusão
Embora ainda existam graves disparidades entre homens e mulheres (salariais, trabalhistas, no plano político, em cargos públicos, etc.), é possível perceber uma forte escalada normativa nos últimos anos, em prol da igualdade de gênero.
Especificamente no campo do processo civil, os avanços foram significativos, mas ousamos dizer que de nada adiantam as reformas, se os espíritos permanecem congelados. É preciso um giro de mentalidade, uma releitura de antigos dogmas, mirando-se os vetores estruturantes do Estado Democrático de Direito. A luta pela igualdade de gênero não deve ser apenas das mulheres, mas de toda a coletividade.
Em suma, muito já se avançou, mas o caminho ainda é longo, pois foram séculos de repressão e discriminação. De qualquer modo, o caminho é sem volta e o que nos conforta é saber que estamos na direção certa.