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Quando o algoritmo se torna o criador

por Felipe Dannemann Lundgren

23 de maio de 2019

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A criação de trabalhos de caráter fundamentalmente criativos por computadores já é uma realidade. Máquinas já possuem a capacidade de produzir textos literários, obras musicais, audiovisuais e até mesmo obras de arte (de boa qualidade, diga-se de passagem).

Recentemente, foi noticiado que um famoso quadro de Rembrandt havia sido reproduzido por aplicações de inteligência artificial, combinando técnicas de reconhecimento facial, impressão tridimensional e algoritmos (em um projeto intitulado “The Next Rembrandt”). O resultado assombrou o mundo, tanto o artístico quanto o científico, dado o grau de semelhança da réplica com a obra original do famoso pintor holandês.

Em áreas menos badaladas, como no mundo jurídico, também já é comum a utilização de aplicações de inteligência artificial, auxiliando juízes e operadores do direito na elaboração de pesquisas jurisprudenciais, pareceres, contratos e até mesmo na elaboração de sentenças. Nomes como “Victor” (sistema de inteligência artificial utilizado no STF), “Sócrates” (no STJ) e “Bem-Te-Vi” (no TST) já fazem parte do cotidiano de advogados e membros do poder judiciário e representam uma tendência irreversível.

Reforçando essa impressão, a “contratação” do aplicativo de música “Endel”, especializado na criação de trilhas sonoras por algoritmos, pela Warner Music, uma das maiores empresas mundiais do ramo fonográfico, demonstra a relevância econômica que a questão já adquiriu. Pode parecer um pouco surreal, mas isso significa que um software se junta a nomes como Ed Sheeran, Alanis Morrisette e Anitta na lista de artistas contratados pela gravadora.

Além dos impactos econômicos e sociais mencionados acima, a utilização de máquinas e computadores para a realização de trabalhos tradicionalmente atrelados à criatividade e intelecto humanos, traz enormes desafios no campo jurídico, mais especificamente no ramo da propriedade intelectual.

De plano, surgem questões legais interessantes e de solução complexa relacionadas às criações feitas por computador.

Questionamentos com relação à autoria das obras, direitos morais e patrimoniais de autor, são cada vez mais frequentes. Questiona-se, até mesmo, se uma obra produzida por uma aplicação de Inteligência artificial merece a proteção do direito autoral. Afinal, será que é possível afirmar que um trabalho eminentemente mecânico, feito por máquinas, pode ser considerada uma criação de espírito?

E as questões relacionadas ao plágio e reproduções não autorizadas de obras de terceiros? Como fica a tutela jurídica em casos de infração por meio de obras criadas por algoritmos de computador? A responsabilidade pela reparação de eventuais danos é do programador que escreveu o algoritmo, ou é daquele que utilizou o programa de computador para infringir a obra de terceiro?

São todas questões jurídicas complexas e de difícil solução, não existindo, pelo menos por enquanto, respostas concretas para esses desafios. O que não se tem dúvida é que essas questões deverão ser endereçadas pelo legislador em um futuro breve, dada a rapidez com que a tecnologia evolui. Em outras palavras, trabalhos criativos feitos por aplicações de inteligência artificial já são uma realidade e, em algum momento, precisarão ser tutelados pelo ordenamento jurídico vigente. Talvez esse momento já tenha, inclusive, chegado.

A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei No. 9.610/98), por exemplo, determina que autor é a “pessoa física” criadora da obra literária, artística ou científica, o que leva muitos especialistas a defender, com propriedade, que a autoria de uma obra só pode ser atribuída a um ser humano, nem que seja aquele que programou a máquina ou que escreveu o algoritmo de funcionamento da máquina.

Já existem algumas indicações de como endereçar a questão em outros países. Em legislação pioneira, a lei britânica de 1988 que tutela os direitos sobre obras criativas no Reino Unido definiu que em obras artísticas geradas por computador, o autor é a pessoa que realiza os arranjos necessários para a criação da obra, ou seja, a pessoa responsável por fazer o programa de computador operar na criação do trabalho criativo. É uma solução interessante e bastante pragmática, aumentando a segurança jurídica para produtores de conteúdo.

Já nos EUA, o órgão de registro de direitos autorais americano não permite a proteção de obras produzidas por máquinas ou por mero processo mecânico, criando, assim, um importante empecilho para registro de obras criadas por programas de computador e, como consequência, para o exercício de direitos contra potenciais infratores.

Questão semelhante já havia sido enfrentada com a introdução das câmeras fotográficas no mercado. À época, muitos defendiam que obras fotográficas não mereceriam a proteção do direito autoral, por se tratar de uma mera reprodução mecânica de fenômenos naturais, paisagens ou pessoas. Com o passar do tempo e com a difusão da tecnologia e a popularização da fotografia, esse entendimento foi superado, sendo questão pacífica, atualmente, que obras fotográficas merecem proteção.

A questão da tutela jurídica de trabalhos criativos elaborados por programas de computador parece trilhar a mesma direção o que, a nosso ver, é o caminho correto, dada a relevância econômica que esse tipo de criação já possui na nossa sociedade e pelo fato de a evolução tecnológica ser um caminho sem volta.

Cabe ao direito se adequar à realidade moderna.

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Felipe Dannemann Lundgren

Conselheiro - Conselho Administrativo

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