14 de outubro de 2025
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STJ define que o acesso a bens digitais deixados por pessoas falecidas exige incidente judicial com nomeação de perito
Em 9 de setembro, a Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu, por maioria, que o acesso a conteúdos digitais armazenados em dispositivos de pessoas falecidas deve ocorrer mediante abertura de incidente processual específico no âmbito do inventário, com a nomeação de profissional técnico responsável por identificar, classificar e avaliar os dados, sob controle do juízo.
A controvérsia teve origem em ação de inventário relacionada ao falecimento simultâneo de um casal. Os herdeiros alegaram que os falecidos utilizavam tablets para gerenciar seu patrimônio e armazenar informações relevantes sobre os bens da família. Após o envio de um primeiro ofício à empresa responsável pelos dispositivos digitais, cuja resposta foi considerada excessivamente técnica e de difícil compreensão, os herdeiros solicitaram a expedição de novo ofício, a fim de viabilizar o acesso ao conteúdo digital armazenado nos dispositivos.
O juízo de primeira instância indeferiu o pedido, entendendo que a análise da resposta da empresa responsável pelos dispositivos digitais exigiria a produção de provas técnicas mais amplas, o que ultrapassaria os limites do processo de inventário. Segundo a decisão, caberia apenas verificar a titularidade dos equipamentos, mas não o exame de seu conteúdo, que deveria ser discutido em ação autônoma. O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) manteve esse entendimento ao negar provimento ao agravo de instrumento, considerando que a medida configurava questão de alta indagação.
O caso chegou ao STJ por meio do Recurso Especial nº 2.124.424, no qual a controvérsia se concentrou em duas questões principais: (i) se a apuração de bens digitais, de fato, configura questão de alta indagação e deveria tramitar em ação autônoma; e (ii) se o acesso ao conteúdo poderia ser realizado de forma irrestrita pelo inventariante.
A relatora, ministra Nancy Andrighi, deu parcial provimento ao recurso, afastando a tese de que se trataria de alta indagação e reconhecendo que o pedido poderia ser processado no âmbito do inventário. Ressaltou, no entanto, que o acesso direto ao conteúdo dos dispositivos poderia violar direitos da personalidade.
Segundo seu voto, o Judiciário não pode autorizar que empresas forneçam acesso irrestrito aos dados de seus clientes, sobretudo quando os falecidos não deixaram senhas ou instruções específicas em vida. Para a ministra, é necessário equilibrar o direito dos herdeiros à sucessão com a proteção à memória e à intimidade do falecido, prevista na Constituição e no Código Civil.
Diante disso, propôs a instauração de incidente apensado ao inventário, com a nomeação de perito técnico denominado inventariante digital, responsável por acessar os equipamentos, realizar o arrolamento completo do conteúdo e submetê-lo ao juízo para decisão posterior sobre sua transmissibilidade.
Em voto divergente, o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva defendeu o provimento integral do recurso, sem necessidade de incidente formal ou nomeação de perito. Para ele, os bens digitais devem ser tratados como bens comuns e submetidos à lógica da sucessão universal prevista no artigo 1.784 do Código Civil.
A maioria, entretanto, acompanhou a relatora, entendendo que a complexidade da vida digital contemporânea em que ativos como perfis de redes sociais podem representar patrimônio econômico expressivo exige um modelo que concilie transmissão patrimonial e preservação de valores constitucionais, até que haja regulamentação legislativa específica. Assim, a Terceira Turma fixou que o acesso aos bens digitais não pode ser irrestrito nem automático, devendo ocorrer com filtro judicial e controle técnico especializado, inclusive para resguardar terceiros eventualmente mencionados nos conteúdos digitais armazenados.
A ministra relatora observou, entretanto, que a medida proposta possui caráter transitório, destinada a suprir o vácuo legislativo existente quanto ao acesso aos bens digitais de titularidade de pessoa falecida que não tenha deixado senha ou administrador desses bens. Trata-se, portanto, de uma solução processual aplicável até que seja editada lei específica que discipline o procedimento de acesso aos bens digitais quando os herdeiros não dispuserem da senha do computador do falecido.
O Inteiro teor do acórdão do REsp 2.124.424 está disponível em: REsp 2.124.424