Marcelo Mazzola
Partner, Lawyer, Industrial Property Agent
Marcelo has been working for almost 20 years in the intellectual property field. He is Vice-President of Intellectu[...]
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June 09, 2020
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Em linhas gerais, a carta patente é um título de propriedade expedido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), por meio do qual se reconhecem direitos de propriedade e de uso exclusivo de determinada invenção ou modelo de utilidade. Na prática, concede-se um “privilégio temporário” a autores de inventos industriais (art. 5, XXIX, da CF).
De acordo com o art. 8º da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9.279/96), é patenteável a invenção que atenda aos requisitos de novidade, atividade inventiva e aplicação industrial.
A própria lei especial prevê que, se a patente for concedida sem observância aos requisitos legais, o INPI ou qualquer pessoa com legítimo interesse pode propor ação de nulidade (art. 56 da LPI), que deverá tramitar na Justiça Federal (art. 109, I, da CF), em razão da participação do INPI (que, quando não for autor, intervirá no feito – o STJ encampou a tese do “litisconsórcio dinâmico”[1]).
Feita essa breve introdução, cabe analisar se, em ações de nulidade de patente concedida pelo INPI – e também de ato administrativo que indefere o pedido de patente –, o juiz poderia alargar a causa de pedir (investigando outra hipótese de invalidade), sob o argumento de que o “interesse público” inerente ao sistema de patentes transcende a esfera patrimonial dos litigantes.
A resposta é negativa.
Inicialmente, vale recordar os três elementos identificadores da demanda: partes, causa de pedir e pedido. Para fins do presente artigo, o que nos interessa é analisar os contornos da causa de pedir.
Como se sabe, na petição inicial, compete ao autor indicar a exposição dos fatos e dos fundamentos jurídicos do pedido, que formam a causa de pedir (art. 319, III, do CPC).
De acordo com a doutrina, “compõem a causa de pedir o fato (causa remota) e o fundamento jurídico (causa próxima)”[2]. Com efeito, a causa de pedir é o “fato ou o conjunto de fatos jurídicos (fatos da vida juridicizados pela incidência da hipótese normativa) e a relação jurídica, efeito daquele fato jurídico, trazidos pelo demandante como fundamento do seu pedido” [3].
Nesse sentido, deve o autor demonstrar como os fatos elencados autorizam a produção do efeito jurídico perseguido (isto é, a incidência da hipótese normativa ao suporte fático concreto).
A pluralidade de fatos jurídicos pode configurar a chamada cumulação de demandas, o que é muito comum, por exemplo, em ações rescisórias (quando, em uma mesma ação, se pede a desconstituição da decisão com base em diferentes incisos do art. 966 do CPC).
A mesma lógica se aplica quando o INPI – ou eventual interessado – alega a nulidade da patente com base em hipóteses normativas distintas (art. 8º da LPI). Explica-se: quando o autor pede a nulidade da patente por ausência de atividade inventiva e falta de aplicação industrial, existem aí duas causas de pedir, que, inclusive, poderiam ensejar duas demandas distintas.
Convém lembrar que, até a citação, o autor pode aditar ou alterar a causa de pedir. Depois do saneamento, somente com o consentimento do réu, assegurado o devido contraditório (art. 329, I e II, do CPC).
Ocorre que, apesar do expresso regramento legal, alguns magistrados federais estão alargando a causa de pedir em ações de nulidade e/ou de indeferimento de pedido patente, sob o argumento de que o interesse público inerente à discussão justificaria essa ampliação solipsita[4].
Com todo o respeito, a prática não deve ser admitida.
Antes de avançar, vale registrar que na III Jornada de Direito Comercial, que aconteceu nos dias 06 e 07 de agosto de 2019 em Brasília, um Enunciado sobre a temática chegou a ser aprovado – ainda que de forma apertada – na comissão de estudos de propriedade intelectual. Porém, foi vetado na plenária, não produzindo, portanto, quaisquer efeitos (nem mesmo persuasivos).
O texto do Enunciado era o seguinte: “Em ação em que se discuta a validade de patente, o Juízo Federal deverá analisá-la como um todo, aplicando o direito à espécie, e não estando adstrito à fundamentação normativa apresentada pelas partes, diante da relevância econômica e social que norteia a sua concessão, que transcende a esfera patrimonial dos litigantes”.
Pois bem, independentemente disso, algumas decisões judiciais vêm encampando a tese de que, “se a parte traz ao judiciário pedido de anulação de um ato administrativo, sustentando que o mesmo foi ilegal, ao analisar o referido ato, deve o juiz analisar TODOS os requisitos legais do mesmo”[5].
Na mesma linha, afirma-se que, como o ato administrativo que defere ou indefere uma patente ostenta natureza vinculada, “o fato de o indeferimento de uma patente em esfera administrativa ter se dado apenas com base na inobservância de um dos requisitos não impede que o Judiciário, no exame de legalidade do ato administrativo, aprecie os demais requisitos exigidos na norma concernente (…). Não se pode olvidar o interesse público subjacente às causas que tem por objeto o deferimento de patente sobre invenção (…) aspecto que também é apto a afastar qualquer forma de limitação da apreciação pelo Judiciário quanto à observância dos requisitos legais exigidos para esse privilégio na exploração de criação industrial”[6].
A argumentação é sedutora, mas não convence. Isso porque, não pode o Judiciário se imiscuir no tema, alargando ex officio a causa de pedir.
Primeiro, porque, ainda que a sindicabilidade judicial sobre atos administrativos vinculados seja mais intensa do que aquela relacionada aos atos discricionários – em razão da impossibilidade, nesse último caso, de reexame do juízo de conveniência e oportunidade do administrador público –, mesmo no controle de atos vinculados o Poder Judiciário somente pode apreciar a legalidade do ato impugnado nos estritos limites da pretensão judicial.
Significa dizer que a caracterização do ato como “vinculado” não confere ao Poder Judiciário carta branca para apreciar aspectos formais ou materiais inerentes à atividade administrativa que não foram suscitados pelas partes na demanda. Até porque, há presunção de legalidade e legitimidade do ato administrativo, o que reforça o pensamento.
Segundo, porque a ampliação ex officio da causa de pedir viola o princípio da demanda, que prevê que o processo começa por iniciativa da parte, a quem cabe delimitar as questões de fato e de direito (art. 2º do CPC).
Além disso, infringe o princípio da congruência, já que o juiz deve decidir “o mérito nos limites propostos pelas partes, sendo-lhe vedado conhecer de questões não suscitadas a cujo respeito a lei exige iniciativa da parte” (art. 141 do CPC), não podendo, ainda, “proferir decisão de natureza diversa da pedida, bem como condenar a parte em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado” (art. 492 do CPC).[7]
De fato, o julgamento do mérito deve ser congruente com os limites delineados pelas partes, não podendo o juiz ir além ou ficar aquém dos elementos da demanda. Essa congruência somente pode ser excepcionada quando a lei expressamente autorizar, tal como ocorre, por exemplo, nas demandas possessórias, ou em processos objetivos, como nas ações de controle abstrato de constitucionalidade. Não há, contudo, qualquer exceção para ações de nulidade de ato administrativo.
Como destaca a doutrina, “fosse permitido ao órgão julgador trespassar os referidos limites da causa de pedir, as consequências seriam desastrosas para o direito de participação e o due process of law (…). A rigor, permitir uma atuação judicial nesse sentido é atribuir ao órgão judicante poder para exercer ação pelo autor, ou, como paralelo, apresentar defesa pelo réu[8]”.
Terceiro, porque, ao alargar ex officio a causa de pedir, o juiz, na prática, age de forma impartial (com T mesmo)[9], isto é, atua exercendo funções que são típicas das partes, o que pode comprometer o requisito anímico da imparcialidade (art. 5ª, XXXVII e LIII, da CF).
Quarto, porque, ainda que os juízes possam decidir com base em fundamento legal diferente daquele indicado pelas partes (iura novit curia), a alteração ex officio da causa de pedir configura, na verdade, inovação quanto ao fato/fundamento jurídico (questão fora do perímetro da lide).
Quinto, porque a alegada existência de “interesse público” na sistemática de concessão de patentes não pode ser um álibi para a alteração da causa de pedir.
Se fosse assim, em qualquer ação judicial conectada ao interesse público (por exemplo, ações de improbidade administrativa, ambientais etc.) poder-se-ia alterar, ex officio, a causa de pedir, em clara violação ao devido processo legal, a ensejar nefasta insegurança jurídica.
Sexto e último, porque a iniciativa judicial pode implicar em violação ao princípio do juiz natural (art. 5º, XXXVIII e LIII, da CF). Basta pensar, por exemplo, na hipótese de o juiz alargar a causa de pedir para acrescentar hipótese de invalidade que já esteja sendo discutida em outra demanda (proposta em data posterior).
Nesse caso, passaria a haver, na prática, uma conexão criada artificialmente, com efetivo risco de decisões conflitantes, a justificar a reunião dos feitos no juízo prevento (art. 59 do CPC – o registro ou a distribuição da petição inicial torna prevento o juízo).
Em suma, não pode o Judiciário promover ex officio a mutação da causa de pedir em ações dessa natureza, devendo exercer o self-restraint, sob pena de criar insegurança jurídica e desnudar eventual parcialidade ideológica frente ao sistema de patentes, em frontal violação a dispositivos constitucionais e infraconstitucionais.
[1] STJ, REsp 1.775.812/RJ, Min. Rel. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, DJe 22.03.2019. Sobre o tema, ver MAZZOLA, Marcelo; RIBEIRO, Nathalia. Ressignificação da posição processual do INPI nas ações de nulidade: um litisconsórcio dinâmico: necessidade de afetação do tema pelo STJ. Revista da ABPI, nº 153, pp. 31-41, mar-abr, 2018.
[2] CRUZ E TUCCI, José Rogério. A causa petendi no processo civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 154.
[3] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 18. ed. v. 1. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 559.
[4] STRECK, Lenio Luiz. A luta da crítica hermenêutica do Direito contra o solipsismo judicial. In: SEGUNDO, Elpídio Paiva Luz; MENDES, Bruno Cavalcanti Angelin (Orgs.). Diálogos sino-luso-brasileiros sobre jurisdição constitucional e a crítica hermenêutica do Direito de Lênio Luiz Streck. Salvador: JusPodivm, 2018, p. 24.
[5] Processo nº 5028776-86.2019.4.02.5101/RJ, 25ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro, decisão proferida em 23.01.2020.
[6] TRF/2, Agravo de instrumento nº 5001948-93.2020.4.02.0000/RJ, Des. Rel. André Fontes, decisão proferida em 22.04.2020.
[7] “a faculdade de iniciar a demanda e fixar o seu conteúdo é deixada ao exclusivo alvedrio dos sujeitos do direito, qualquer que seja a natureza da pretensão material. Ao órgão judicial não se outorga poder para fazer cessar a demanda ou modificar o pedido ou a causa de pedir, porquanto tal atividade comprometeria irremediavelmente a imparcialidade própria de seu ofício”. OLIVEIRA, Carlos Alberto Alvaro de Oliveia, Poderes do Juiz e visão cooperativa do processo. Disponível em: https://www.abdpc.org.br/abdpc/artigos/Carlos%20A%20A%20de%20Oliveira%20(8)%20-formatado.pdf. Acesso em: 28.04.2020.
[8] MACÊDO, Lucas Buril. Objeto dos recursos cíveis. Salvador: JusPodivm, 2019, pp. 55-56.
[9] CABRAL, Antonio do Passo. Imparcialidade e Impartialidade: por uma teoria de repartição de funções no processo. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº 149, jul./2007, pp. 339-364. No mesmo sentido COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a imparcialidade a sério: Proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. Salvador: JusPodivm, 2018.