by Filipe Fonteles Cabral
August 27, 2021
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Introdução
A tutela jurídica das marcas, garantida por meio de registro no INPI, possui componentes exógenos que podem impactar o exercício dos direitos de propriedade industrial em casos concretos. Trata-se dos efeitos decorrentes da notoriedade¹ do sinal distintivo, característica que pode alongar ou encurtar a tutela original da marca.
Neste breve ensaio, o foco será nos efeitos de alongamento do escopo da tutela jurídica das marcas. O encurtamento da proteção é matéria igualmente importante, mas merece um estudo apartado.
O grau de distintividade das marcas
A lei da Propriedade Industrial é taxativa ao prescrever que são suscetíveis de registro como marca os sinais distintivos visualmente perceptíveis². Em interpretação sistemática da lei, sinal distintivo é o sinal que não é de caráter genérico, necessário, comum, vulgar ou simplesmente descritivo.³
O Manual de Marcas do INPI esclarece que o requisito legal da distintividade se relaciona com a própria função da marca, consistente em distinguir o produto ou serviço por ela assinalado. O sinal distintivo permite a individualização de determinado produto ou serviço em relação a outros de mesmo gênero, natureza ou espécie.4
Quanto aos requisitos intrínsecos, para que seja registrável, a marca deve ser visualmente perceptível5 e não pode ser composta por elementos vedados na lei6. Dentre os efeitos jurídicos produzidos pelo registro da marca está o direito de uso exclusivo do sinal no mercado, isto é, a faculdade de impedir que terceiros usem sinal igual ou semelhante para identificar produtos ou serviços idênticos ou afins.7
Não é tarefa fácil, todavia, delimitar o exato escopo de proteção da marca contra terceiros. Uma marca composta por elementos evocativos não pode receber o mesmo grau de proteção de um sinal fantasioso, sob pena de violação dos princípios constitucionais da livre iniciativa, livre concorrência e função social da propriedade.8
Na prática, como o requisito legal da distintividade possui relação com a própria função da marca (qual seja, a individualização de um produto ou serviço), o estudo do grau de distintividade da marca assumiu grande importância para a determinação do seu escopo de proteção.
No caso Abercrombie & Fitch Co. v. Hunting World, Inc. (1976), o Tribunal de Apelação do Segundo Circuito dos Estados Unidos definiu diferentes tipos de sinais de acordo com seu caráter distintivo9:
“The cases, and in some instances the Lanham Act, identify four different categories of terms with respect to trademark protection. Arrayed in an ascending order which roughly reflects their eligibility to trademark status and the degree of protection accorded, these classes are (1) generic, (2) descriptive, (3) suggestive, and (4) arbitrary or fanciful. (…) The generic term is the one that refers, or has come to be understood as referring, to the genus of which the particular product is a species. At common law neither those terms which were generic nor those which were merely descriptive could become valid trademarks.”
No Brasil, a mesma linha de raciocínio vem sendo seguida pela doutrina e pelos tribunais10. Não por outro motivo o grau de distintividade das marcas constitui um dos sete critérios do Teste 360º para Análise de Confusão de Marcas11. Significa dizer que marcas sugestivas recebem proteção limitada enquanto sinais fantasiosos ou arbitrários são amparados com uma tutela jurídica mais rigorosa contra a introdução de sinais semelhantes por concorrentes.
Ocorre que, além da distintividade intrínseca de um sinal, há fatores exógenos que podem impactar seu escopo de proteção, seja para ampliar ou restringir a tutela jurídica original. Não é exagero falar, portanto, em elasticidade da proteção de marcas.
A elasticidade da tutela jurídica das marcas
Como a característica da distintividade está ligada à própria função da marca na diferenciação de produtos ou serviços concorrentes, a eventual notoriedade de um sinal distintivo poderá ter reflexos em seu escopo de proteção.
Como assentado na lei da Propriedade Industrial12 e sedimentado pelo Superior Tribunal de Justiça13, para que duas marcas sejam consideradas colidentes, é necessária a presença de três requisitos cumulativos: (i) a semelhança das marcas envolvidas; (ii) a identidade ou afinidade entre os produtos ou serviços a serem distinguidos; e (iii) a possibilidade de confusão ou errônea associação entre as marcas no mercado.
Objetivamente, os atos de confusão ou associação entre duas marcas implicam na possibilidade de troca de um produto/serviço por outro ou na crença de que ambos advêm da mesma fonte. Se um sinal provoca potencial confusão ou associação com outro, a função precípua da distintividade não é exercida.
A notoriedade de uma marca tem o poder de alterar a percepção do consumidor sobre a distintividade de um sinal, funcionando como um catalizador para aumentar ou diminuir a possibilidade de confusão ou associação com sinais semelhantes de concorrentes. Neste caso, a notoriedade deve ser considerada um fator exógeno relevante para ampliar ou restringir a tutela jurídica da marca, de modo a aperfeiçoar o arcabouço jurídico de proteção à propriedade imaterial, especialmente à luz do interesse social e do desenvolvimento tecnológico e econômico do País14.
É o caso da teoria do secondary meaning, que retira sinais descritivos do lugar comum para conferir a tutela jurídica de marca. É, na prática, um fenômeno de “distintividade adquirida”, isto é, um sinal que nasce “descritivo” e adquire caráter distintivo ao longo do tempo, em razão do uso reiterado como marca e da notoriedade alcançada perante o mercado.15
O secondary meaning também teve origem do direito norte-americano. No caso Two Pesos, Inc. v. Taco Cabana, Inc., a Suprema Corte dos Estados Unidos assim decidiu:
“Marks which are merely descriptive of a product are not inherently distinctive. When used to describe a product, they do not inherently identify a particular source, and hence cannot be protected. However, descriptive marks may acquire the distinctiveness which will allow them to be protected under the Act”.16
No Brasil, a jurisprudência reconhece o fenômeno do secondary meaning tanto no âmbito de ações de infração, na Justiça Estadual17, quanto em sede de ações de nulidade contra ato administrativo do INPI que indefere o registro de marca, perante a Justiça Federal.18
Nesse contexto, mesmo sinais genéricos podem ser alçados à categoria das marcas com a consequente tutela jurídica, em função da notoriedade. É o caso da marca “POMODORO”, cujo registro foi garantido por meio de decisão do TR2 assim ementada:
“O artigo 124, VI, da lei 9.279/96 veda o registro de sinal de caráter genérico, comum ou vulgar, e que também guarde relação com o produto ou serviço que visa distinguir, objetivando impedir o monopólio sobre denominações genéricas, além da concorrência desleal.
Entretanto, in casu, trata-se de uma marca, de natureza fraca, que, a par de não poder ser apropriada com exclusividade, em razão do significado comum do nome, é percebida pelo consumidor como marca e não propriamente como termo genérico de um produto – tomate – , cumprindo, deste modo, o seu papel de distinguir o produto/serviço oferecido, perante às outras empresas concorrentes, de forma integral, resguardando os interesses tanto do seu titular quanto os dos consumidores.”19
Não menos relevantes são os casos em que a notoriedade da marca é fator preponderante para aumentar o rigor na proteção de sinais sugestivos ou arbitrários. O uso reiterado e consistente da marca pode gerar a “distintividade adquirida” sobre um sinal sugestivo de forma global ou mesmo sobre os elementos que o compõe.
É o caso, por exemplo, da marca CHINA IN BOX, cuja distintividade vem sendo sistematicamente reconhecida pelos tribunais:
“[…] não se pode olvidar que, atualmente, junto ao público consumidor, os signos em comento [“CHINA” e “IN BOX”], utilizados de forma conjunta, estão diretamente associados ao serviço de comida chinesa servida em caixa, oferecido primeiramente pela autora, o que traduz a ocorrência do fenômeno do secondary meaning (Teoria do Significado Secundário) […] Ao se permitir que a marca da autora (“CHINA IN BOX”) conviva com a marca da ré (“ASIA IN BOX”), se utilizando do conceito criado pela autora de “comida chinesa em caixa”, tal permissão acaba gerando redução da distintividade do signo copiado.”20
“O instrumento eletrônico demonstra que as principais concepções da agravante [CHINA IN BOX], ressalvado novo exame ao ensejo da solução de fundo, estão, de fato, sendo utilizadas pela agravada [MASSA IN BOX], seja quando emprega a expressão in box.”21
“Apesar de a requerida vender comida mineira e baiana, com cardápio regionalizado, não é garantia de que o consumidor está isento, no momento da escolha, do perigo de confundir o produto da requerida com o modelo praticado pela autora e suas franqueadas espalhadas pelo Brasil. O interessado poderá imaginar que o uai in box constitui uma ramificação do china in box e adquirir, equivocado, uma mercadoria estranha ao seu desejo, o que constitui um dos efeito nocivo da concorrência desleal.”22
“[…] consta que a ré se utiliza do signo Mineiro in Box e vale-se de padrão visual similar ao da autora, conforme se infere dos documentos juntados, situação que, a despeito da diversidade da comida oferecida, poderá levar o consumidor a crer que se trata de uma ramificação do China In Box.”23
No âmbito do STJ, é relevante a decisão proferida no caso Apple x Gradiente, que reconheceu a notoriedade da marca Apple:
[…] Diferentemente do que ocorreu com a IGB, a Apple, com extrema habilidade, conseguiu, desde 2007, incrementar o grau de distintividade da expressão “iPhone” (originariamente evocativa), cuja indiscutível notoriedade nos dias atuais tem o condão de alçá-la à categoria de marca notória (exceção ao princípio da territorialidade) e, quiçá, de alto renome (exceção ao princípio da especificidade). 11. No que diz respeito ao “iPhone” da Apple, sobressai a ocorrência do fenômeno mercadológico denominado secondary meaning (“teoria do significado secundário da marca”), mediante o qual um sinal fraco (como os de caráter genérico, descritivo ou até evocativo) adquire eficácia distintiva (originariamente inexistente) pelo uso continuado e massivo do produto ou do serviço. A distinguibilidade nasce da perspectiva psicológica do consumidor em relação ao produto e sua marca, cujo conteúdo semântico passa a predominar sobre o sentido genérico originário. 12. Assim, é certo que a utilização da marca “iPhone” pela Apple – malgrado o registro antecedente da marca mista “G GRADIENTE IPHONE” – não evidencia circunstância que implique, sequer potencialmente, aproveitamento parasitário, desvio de clientela ou diluição da marca, com a indução dos consumidores em erro.24
Tais decisões apenas reforçam a ideia de que a notoriedade da marca justifica a maior proteção do respectivo signo distintivo.
Conclusão
Os sinais distintivos são dotados de características intrínsecas e extrínsecas que podem evoluir ou involuir ao longo do tempo. A notoriedade de uma marca é um fator exógeno que produz grande impacto na percepção do sinal pelo consumidor, seja pela aquisição ou pela perda de distintividade.
A função precípua das marcas é distinguir produtos ou serviços daqueles concorrentes. Assim, qualquer fenômeno que sirva como catalizador para aumentar ou diminuir a possibilidade de confusão ou associação entre marcas concorrentes deve ser sopesado.
Se a distintividade das marcas é elástica, também deve ser elástica a tutela jurídica no momento da aplicação do direito de propriedade industrial no caso concreto. O reconhecimento, em âmbito jurisprudencial, da “distintividade adquirida” por força do uso contínuo e reiterado da marca confere efetiva proteção a relevantes ativos de propriedade industrial.
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